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O menino de Ch'ulp'o (Parte 1 de 2)
Vida & Arte

O menino de Ch'ulp'o (Parte 1 de 2)

Edição Impressa
Tipo Notícia

Algumas obras literárias não são feitas para serem lidas apenas uma vez. Por um simples pedaço de cerâmica (Martins Fontes), de Linda Sue Park, é uma dessas preciosidades. Basta percorrer suas páginas de coração aberto para convencer-se disso. É um livro classificado como infantojuvenil, mas recomendado a todas as idades, pois não há limite de idade para acreditar na plena realização como fruto das insistentes procuras do espírito criativo.

Texto de temperatura agradável, que emociona em ternas camadas de calor humano. A essência do ser aparece espalhada em leveza, respiração, amplitude, tensão e proximidade. Tudo em respeito à vida e à cultura de uma comunidade de ceramistas. Nesse ambiente social orgânico é que se desenvolve essa história de exercício da consciência, com destaque para a função da sensibilidade, o papel da atenção ao outro, as fronteiras da convivência solidária e a construção do afeto.

A narrativa nos leva a querer prestar mais e mais atenção. É como se tivéssemos vendo e não lendo. O espaço entre o leitor e a história não exibe obstáculos, não apresenta distâncias. Os personagens do livro de Linda Park são claros até em suas dúvidas. Realizam a vida com esmero, distração, rudeza e amorosidade. Podem até não saber, mas sentem que viver exige força, determinação e coragem de existir com grandeza, mesmo quando se sentem fracos e frustrados.

O protagonista, um menino que tem como familiar apenas um amigo manco, é tudo o que há em termos de curiosidade vital e de maleabilidade da persistência no processo de conquista de um lugar em Ch'ulp'o, pequeno povoado coreano do século XII, localizado entre o mar e as montanhas e contornado por um rio. Os dons de todos os personagens são bem realçados: a filosofia do homem de uma perna só, conhecido como Homem-Garça, o perfeccionismo do mestre ceramista, os cuidados telepáticos da sua mulher e toda a sensibilidade de um povoado unido por senso de proteção comunitária e dividido em segredos da arte da cerâmica. Cada um e todos estão centrados no que são; não há bons ou maus, heróis ou vilões, apenas suas vidas insuficientes e ao mesmo tempo transbordantes.

A história de Por um simples pedaço de cerâmica acontece entre o querer necessário e a necessidade técnica na operação da vida. Impossível ao leitor atento não se encontrar em uma ou outra parte do perfil dos personagens. De um lado, um menino sonhando em aprender a fazer um pote e, do outro, o mestre ceramista aspirando em um dia receber uma encomenda real. Desejos calados. Dentre os requintes do texto de Linda Park destaco a forma emudecida como os personagens descobrem os sonhos uns dos outros e, recatados, tentam contribuir para que se realizem.

Essa é a questão que os vincula entre si e com o leitor, embora não seja a questão principal da obra. O livro enuncia desde o começo, e vai além do fim, a construção de relações entre diferentes e complementares na produção da grandeza humana. Por todas as páginas o leitor pode se pegar participando ou tentando se compreender em um ou outro dos atos comunitários e universais que constituem o enredo. Nessa experiência de seguir com a história, a pergunta que surge não se resume a "o que estou fazendo aqui", mas "aonde podemos ir, caminhando juntos". (Continua em 26/2/2019)

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