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Escola sem Partido.
Reportagem

Escola sem Partido.

O projeto de lei que ameaça a liberdade dos professores em sala de aula ganhou a cena em 2018. Arquivada, a proposta deve voltar em 2019 e nos provoca a pensar para que serve a escola e a quem serve. A origem da ideia de uma educação acrítica dá a pista
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O POVO - De que forma a aproximação da escola ao conhecimento popular e às lutas da comunidade, como a luta do povo indígena Anacé para evitar o desvio da água do Lagamar do Cauípe para o Complexo Industrial do Pecém, pode contribuir para a educação formal?

Boaventura de Sousa Santos - Pode e muito. Precisamos educar os educadores. E sensibilizá-los por duas coisas. Primeiro que o conhecimento deles é válido, mas é limitado, e que por vezes não atende a preocupação das populações. E, em segundo lugar, que há outros conhecimentos extremamente válidos que eles não se habituaram a conhecer e que devem conhecer. É isso que está na raiz do que nós chamamos de ecologia dos saberes. Eu penso que a escola aqui obviamente devia ser objeto de uma transformação profunda. É preciso valorizar outras concepções de natureza, de meio ambiente, de direitos humanos, ou nós não iremos muito longe. Eu penso que a escola está muito distante e é um grande problema no Brasil. Sem nenhuma surpresa pra mim, surgiu o movimento da Escola Sem Partido, que é uma escola altamente partidária e altamente ideológica. É um excesso. Estamos a assistir em várias universidades do mundo, não é só aqui, um processo de censura. Há exemplos na Inglaterra e em vários cantos do mundo. Mas o Brasil é um laboratório, é onde as coisas acontecem com uma violência especial. Nesse momento é um laboratório do processo reacionário global.

 

OP - E o que está na origem desta "educação neutra"?

Boaventura de Sousa Santos - Essa proposta tem longa data que é a proposta da ideologia capitalista do século 19. Ela surge para educar as pessoas dentro da sociedade capitalista que está a nascer. Há na Idade Média, século 18, muita gente que trabalha, mas trabalha como autônomo, é proprietário de seus instrumentos. Essa coisa de trabalhar para o outro, depender de outra pessoa que dá o seu salário é uma coisa totalmente nova. Uma avalanche de camponeses vinha pras cidades e os problemas sociais na Europa assumiam proporções extraordinárias. Londres, Paris, Berlim não estavam preparadas para acolher tanta gente. As pessoas ficavam em favelas, não havia saneamento básico, havia prostituição, muita criminalidade. Portanto a escola neutra era a escola que dizia 'essa é a realidade, não há alternativa'. Ela ensina a contar, a ler, coisas que sejam funcionais para esta sociedade, mas não a problematizam, não se questiona a razão fundamental de onde isto vem. E isto é o capitalismo. Por que não se questiona? Porque é o progresso. E o progresso tem que atropelar gente. É nessa altura que surge o conceito de progresso como sendo um conceito linear, irreversível.

 

OP - É como se então a democracia não fosse capaz de gerir as consequências do capitalismo?

Boaventura de Sousa Santos - É um problema complexo porque obviamente que a democracia historicamente existe como modelo desde Aristóteles e até antes. Mas é só no século 19, no período capitalista, que a democracia realmente floresce. Mas as mulheres não votavam, os trabalhadores não votavam... 3% da população votava, gente que tinha interesse na manutenção da sociedade capitalista. As lutas por sufrágio começaram a incluir mais gente, mais interesses, e a partir daí surge uma grande tensão. Porque a democracia se sustenta na ideia da soberania popular e o capitalismo se sustenta no princípio da acumulação infinita. E obviamente a acumulação é excludente e a soberania por outro lado é inclusiva. Depois da Segunda Guerra Mundial, entramos num período diferente em que a democracia, já verdadeiramente ampliada, tenta, digamos, de alguma maneira limar as arestas do capitalismo, incluindo direitos sociais, direito à saúde, à educação, ao sistema de pensões. Chamamos a isso social-democracia. E isso foi possível fundamentalmente porque houve a Guerra Fria. Era preciso mostrar que o capitalismo consegue desenvolver as sociedades e tem uma vantagem sobre o comunismo, que é permitir que as pessoas tenham liberdade. Quando cai o muro de Berlim não é o comunismo que cai, cai a social-democracia porque o capitalismo deixou de ter rivais. Portanto, a partir de agora, já não precisamos dar todos esses direitos a toda a gente. E aí começa a crise da democracia.

 

OP - O senhor fala que o Brasil é um laboratório. O que os movimentos sociais podem neste momento?

Boaventura de Sousa Santos - Estamos num processo de luto. O luto é muito importante. E há dois tipos de renovação que se tem que pensar. Primeiro, é a renovação dos partidos de esquerda. Os sinais não são muito bons de que haja uma vontade, uma renovação profunda. Até porque alguns partidos que podemos considerar de centro-esquerda, como o partido do Ciro Gomes (PDT), já mostraram que poderão lançar-se sem o PT sem o Psol. Por outro lado, não é fácil ao PT fazer uma autocrítica. Isso vai ser um pouco difícil, mas eu penso que isso pode levar, por exemplo, à formação de novos partidos, de movimentos sociais. Partidos onde os líderes e as agendas sejam decididos por assembleias de cidadãos, como o Podemos fez na Espanha. Tudo é possível, mas vai levar tempo, não é agora. Agora, é evidente que isso é apenas uma dimensão. E as coisas vão ter o seu lugar. Os movimentos sociais, por outro lado, durante muito tempo desmobilizaram suas bases porque pensaram que tinham um amigo no Planalto. Agora, estão a pensar-se para ver como vão organizar-se. Por um lado, eles têm que voltar às suas bases, têm que consultar as pessoas, têm que voltar a falar com as periferias. Porque não é (escutar) aqueles que estão mais avançados na luta, são as pessoas que nunca entraram numa luta, mas são vítimas de muita opressão. Como aquelas senhoras do Pecém (que se manifestaram em defesa do Lagamar do Cauípe), que não são de movimentos sociais, nem querem ser, mas estão muito ofendidas e, portanto, organizam-se. Eu chamo isso de movimentos da indignação. Eles têm uma característica importante: eles propõem alternativas. São as economias solidárias, são as economias da simplicidade. Eu fui ao Cumbuco alguns dias comer na rua. Há senhoras que fazem umas comidinhas muito saborosas, aliás, e vi como elas se ajudam umas às outras. É outra lógica, não capitalista. Eu não gosto muito do termo empreendedorismo porque é um termo neoliberal, cada um por si. Mas essas senhoras são empreendedoras de outro tipo, porque são solidárias. O capitalismo é que fez essa coisa estranha de transformar as relações econômicas nas mais importantes. Não é assim que as coisas funcionam. Penso que esse processo de aprendizagem vai ter lugar.

 

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS. SOCIÓLOGO

Boaventura de Sousa Santos é professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e um dos mais proeminentes pensadores contemporâneos. O sociólogo português costuma se definir como um "intelectual de retaguarda". Em novembro, esteve no Ceará para uma oficina da Universidade Popular dos Movimentos Sociais, que aposta na potência do encontro entre os conhecimentos acadêmico e popular.

 

 

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