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Sobre o falso bom humor
Opinião

Sobre o falso bom humor

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Tipo Notícia

No ano de 1974, Glauber Rocha foi hostilizado por amigos à esquerda devido a uma declaração concedida à revista Visão sobre o general Golbery do Couto e Silva. Dizia Glauber, no contexto da entrevista, feita em Roma, ser Golbery um “gênio da raça”. Era o jeito de Glauber provocar, em fala premonitória, que a abertura política seria algo a nascer dos militares, não de fora. Foi demonizado e tachado de traidor. Sem direito a julgamento. Tal qual o fazem em um tribunal do crime ou da Internet.

As sentenças são cada vez mais rápidas e implacáveis. Na manhã de terça-feira já corria o mundo o veredicto de que a escola de samba Paraíso do Tuiuti iria arder no inferno do rebaixamento no Rio por conta do seu enredo. 

 

Para corroborar, a ideia de um suposto constrangimento por parte da Rede Globo, a suposta mandante. Ora, mas não fora a emissora a maior engajada na defesa do afastamento do presidente Temer no auge do escândalo da gravação por Joesley? Não importa, se não serve à tese descarta-se. Ontem a escola sagrou-se vice-campeã em resultado histórico.  

Jornais e sites são alvo de intensas críticas e até de ataques virulentos em função de eventuais angulações de textos ou de fotos. Estamos sujeitos às reações a cada instante. O POVO mesmo viveu isto há algumas semanas e poderá reviver hoje ou amanhã. Teorizam e conspiram, ao tempo em que criam teorias da conspiração. E quem se interessa em contextualizar? Nesta ânsia por justiçamento, às favas com o histórico de profissionais ou de empresas. Quem liga para isso? O comportamento agressivo habita todos os lados – e eles não apenas dois, como tentam dicotomizar.  

Está presente na violência das bandeiras vermelhas queimadas em praça pública (e lusitana), no desejo cruel de ver o oponente no calabouço ou em tantas outras demonstrações de ódio a nos acompanhar nos espaços possíveis para opinião sem edição. E quem precisa de edição, oh maldito gatekeeper? Chamemos de edição aquilo que um editor faz em nome do respeito à dignidade.  

Comentários a ferir a honra de alguém ou do próprio editor, por exemplo, ponho no lixo sem cerimônia. O mesmo nos comentários no rádio. Leiam-se como território livre para as gangues da opinião as tais redes sociais, aqueles púlpitos particulares onde todos podem subir e bradar o que der na telha, mesmo quando ela é de vidro.  

O ódio que mais assusta nem é aquele assumido como estandarte. Candidatos e movimentos a pregar a violência em panfletos não passam de oportunismo rasteiro. O que assusta mesmo no teatro do absurdo político para o qual entramos sem ensaiar é o falso bom humor, um traço marcante de nossa esquerda sorridente. Disfarçado, rondando ao redor, ele habita o cotidiano em pele de Paz &Amor. Parece leve, mas é pesado na essência. Critica a intolerância, mas é intolerante com a divergência. Prega o acolhimento, mas se fecha em guetos. Sorri, mas patrulha o humor.  

É crente detentor do poder de aferir o riso certo e o errado. Reivindica respeito a quaisquer sinais de invasão da esfera privada de seus líderes, mas considera legítimo julgar e fazer piada sobre o afeto de presidente e primeira dama opositores. Ri dos memes com personagens alheios, mas dá lições de falsa moral – como se existisse moralismo verdadeiro – quando é o alvo da anedota. Merecem uma gargalhada. E, por que não, acolhimento. n 

 

Jocélio Leal leal@opovo.com.br Jornalista do O POVO

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