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Iana Soares: As rainhas do deserto
Opinião

Iana Soares: As rainhas do deserto

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No mesmo ano em que Pabllo Vittar nasceu, meus pais me levaram ao cinema para assistir Priscilla, a Rainha do deserto. Em 1994, o “Iguatemi velho” ainda não era tão velho assim e, antes de chegar ao cinema, passávamos em frente à Mesbla e à pista de patins no gelo. Quis patinar muitas vezes, mas sempre estava de sandálias e meus pais diziam que não era higiênico colocar um pé sem meias dentro daquela bota em que milhares de pés já tinham entrado. Um dia estava com uma meia azul, patinei, mas era tão fina que ganhei um calo imenso.


Priscilla, a rainha, era um ônibus que atravessava o deserto australiano com duas drags queens e uma transexual a bordo. Um road movie que entrelaça os dramas de cada personagem aos shows e performances que fazem em várias cidades, entre a admiração e a homofobia. Lembro das cores e da maquiagem. Talvez tenha sido a primeira vez em que ouvi “I will survive” na vida, dublada por Hugo Weaving, o mesmo ator que fez o agente Smith, em Matrix. No meio do deserto, as drags cantam que sobreviverão para crianças, mulheres e homens que sorriem e acham tudo muito bonito.


Na mesma época e cinema, assisti também alguns “filmes de criança”, como Meu primeiro amor 2, depois de ver a primeira parte na Sessão da Tarde. Usava um anel do humor, igual ao da Vada, que se pronuncia Veida. Também queria escrever poesia e um dia descobriria Pessoa e os heterônimos que ele quis ser. Tinha medo de que minha mãe morresse, como no primeiro filme, e adorava aquela escultura em que você via todos os pontos energéticos concentrados na cabeça.


Nos últimos 23 anos, não voltei a assistir nenhum dos dois filmes, mas lembrei de quando conheci Priscilla a partir das últimas polêmicas criadas em torno das relações entre corpo, gênero, arte e infância. Pode ser perverso falar da “pureza das nossas crianças” para reiterar o preconceito e a violência dos adultos. Drags existem, assim como gays, lésbicas, transexuais. Alguns sabemos disso desde sempre. Os filhos de vocês também precisam saber e respeitar. Vai ser mais bonito atravessar o deserto como canta Pabllo: todas lindas, livres e leves. 

 

Iana Soares

ianasoares@opovo.com.br

Jornalista do O POVO
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