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Um coração andando pela rua
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Um coração andando pela rua

 

Cheguei na hora certa à casa mais bonita da cidade. Naquele momento eu era apenas um coração andando pela rua e não enxergava nada além das copas das árvores por trás do muro. Minutos antes eu tinha aprendido com o pajé Luis Caboclo e o Cacique João Venâncio, Tremembés de Almofala, que a resposta para tudo vem da natureza. Os dois estavam na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará a convite do professor Babi Fonteles e vieram falar dos Encantados.

 

Soube da palestra horas antes, o suficiente para cancelar o resto do dia e estar com eles, ouvir o canto Tremembé, fazer perguntas, reforçar o elo com a ancestralidade que também é minha e está no meu espírito. Os Encantados não são coisa de entender, nem explicar. É preciso sentir, como tudo o que importa na vida.

 

A casa mais bonita da cidade é a Reitoria da Universidade Federal do Ceará, abraçada por um lindo jardim, buganvílias coloridas, mangueiras em estado de fortaleza e sustentada por colunas de outros séculos. Um coração andando pela rua olha para a casa rosada e só enxerga o amor, essa aventura com tantas portas e janelas. Parece ser o lugar perfeito para uma alegria sossegada, morada secreta de um príncipe, reduto de silêncio interrompido apenas pelo canto dos pássaros.

 

Cheguei na hora certa, pois os periquitos voltavam para o descanso nos galhos da samaúma e ofereciam a nós todos, que não sabemos voar, um espetáculo do sublime. Chegaram felizes, voando em bando, dançando a mesma valsa, parando aos pares para o descanso. Meus olhos enxergam muito bem ao longe, por isso pude ver que alguns casais trocavam carinhos, coçavam as cabecinhas com o bico. O passarinho acarinhado reagia dengoso, fechando os olhos, detalhe que não consigo esquecer.

 

Há outra morada em Fortaleza que tem as mesmas cores das paredes da Reitoria. É aqui onde tenho acordado todos os dias com o canto dos bem-te-vis. Eles escolheram o telhado para fazer ninho e retribuem a gentileza da moradia acordando a todos nós com seu versinho suave. Eles viram o bem, substantivo masculino, o que causa alegria e felicidade. Se eles estão vendo é porque está aqui perto. Eu vejo também.

 

Isso de reparar no canto dos pássaros é o verdadeiro luxo possível da vida. No final do discurso de Charlie Chaplin no filme O Grande Ditador, ele pede à sua amada Hannah que olhe para o céu. É de lá que virão as esperanças. Enquanto escrevia esta crônica meu amigo Filipe Pinho avisou que Charlie, a Arara do Winston Churchill, tem cento e quatro anos e ainda berra impropérios contra Hitler e os Nazistas. Charlie deve estar ciente de que ainda não nos livramos do perigo. De minha parte, decidi escutar os pássaros. Vou visitar os periquitos da Reitoria sempre que possível, dar bom dia e agradecer aos meus vizinhos bem-te-vis, despertadores desse meu coração que teima em andar pela rua distraído do mundo, concentrado apenas no que vale a pena sentir.

 

Foto do Socorro Acioli

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