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Coração não é mentira
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Coração não é mentira


Há um livro quase secreto na obra póstuma de João Guimarães Rosa: Ooó do vovô. Está na minha mesinha de cabeceira, ao lado da cama. Cuido dele como de um tesouro. Não canso de tocar as páginas como quem faz carinho, olhar os desenhos nos olhos do livro, gestos de puro amor, trabalho afetuoso com a linguagem, feito pelas mãos de um dos maiores escritores da Língua Portuguesa. Justamente quando estava distraído de tudo o que é literário, Rosa foi até onde a Literatura deveria chegar, onde fica explicado para que serve, afinal, escrever e dizer.

 

É um livro lindo, grandioso, foi escrito aos pedaços e não nasceu para ser livro. Por iniciativa da família e do bibliófilo Jose Mindlin, a Edusp organizou uma compilação das cartas, desenhos e cartões postais que Rosa enviava para Vera e Beatriz Helena, duas netas de sua segunda esposa Aracy, mas que ele amou como se fosse mesmo seu vovô legítimo. O amor de verdade, o que chega sem pedir e perguntar, não tem nada a ver com sangue e carne. Existe acima de tudo e isso basta.

 

Aracy é a dona de Grande Sertão: Veredas. João Guimarães Rosa, seu segundo marido, entregou sua obra prima à esposa na dedicatória tão contundente quanto carinhosa. O encontro dos dois aconteceu nas circunstâncias mais adversas, atravessado por dificuldades que foram prontamente superadas pelo amor.

 

Quando perguntaram à Aracy Moebius de Carvalho porque ela, uma jovem brasileira, arriscou tanto para proteger judeus contra as crueldades do Nazismo quando viveu na Alemanha ela respondeu prontamente: porque era justo. Dizem que era tão bonita, culta e doce quanto forte, indomável e segura de si. Separou-se do primeiro marido e partiu para a Alemanha sozinha, com o filho de cinco anos. Arranjou um emprego no Consulado do Brasil em Hamburgo e lá conheceu Rosa.

 

Quando voltaram para o Brasil, nasceram as netas. Elas moravam em São Paulo. Rosa e Aracy, no Rio. Por isso tantos cartões e bilhetes, tantas cartinhas falando de amor, desenhos e palavras reproduzindo a linguagem da pequena Vera, que chamava tudo de Ooó.

 

Um dos cartões vai para a mãe de Vera e agradece pela presença da neta: "você não imagina quanta alegria ela tem nos tem dado. Perto dela a gente acredita mais em Deus e na vida. Que companheirinha maravilhosa, fadazinha!".

 

Para Vera, que chamava a si mesma de "2 - nenen", ele falava de saudades e convidava a voltar para ver a praia, ir ao zoológico e prometia contar histórias de fadas, bruxas e animais. Assim como Rosa registrou com respeito a linguagem dos homens e mulheres do sertão, compilou palavras em idiomas estrangeiros e trabalhou fascinado com o falar dos adultos, cuidou da Língua Infantil, idioma de um universo que se perde, que nunca volta, mas que ele registrou em uma das mais belas de suas obras. Deste tratado sobre o verdadeiro e puro amor, o diálogo mais bonito com Vera ele anotou com capricho:

 

- Mas você, para o vovô, há ser sempre "neném". No coração do vovô. É mentirinha do coração...

 

- Mas coração não é mentira!

 

Óoo tinha toda razão. O que vai no coração é a única verdade.

 

E talvez se perguntassem à Rosa porque amar tanto, porque amar Aracy até o fim da vida apesar de tudo, porque ampliar esse amor ao infinito, ele respondesse o mesmo que ela: porque é justo, é o centro da vida e a força que move tudo.

 

Foto do Socorro Acioli

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