PUBLICIDADE
VERSÃO IMPRESSA

A guerra às drogas e o "efeito balão" no Ceará

2018-02-26 01:30:00
Até a década de 1980, o Brasil e os países do Cone Sul não estavam no mapa da “Guerra às Drogas” empreendida até então pelos Estados Unidos contra narcotraficantes colombianos. O objetivo do governo norte-americano era erradicar a produção da cocaína em seu local de origem, como se somente isso bastasse para resolver o problema dos entorpecentes. Uma consequência inesperada dessa operação de guerra foi o avanço do narcotráfico nos países vizinhos. O Brasil e o Paraguai, por exemplo, foram incorporados ao corredor internacional que une o plantio da coca à sua venda como produto final nas ruas dos grandes centros do mundo.

 

Tal fenômeno teria sido provocado pela pressão exercida pelos EUA contra a Colômbia e a Bolívia, que fez com que os grupos criminosos migrassem suas atividades ilícitas para áreas mais seguras e favoráveis à continuidade das ações. Fazendo um paralelo com a Física, Frank O. Mora, doutor em relações internacionais e especialista em economia política latino-americana, denominou esse fenômeno de “efeito balão”: quando a pressão aumenta em um ponto, o fluxo de ar se move para áreas de menor resistência. De forma semelhante, a dinâmica socioespacial do crime se altera a partir de uma maior repressão policial em determinadas áreas.

 

A reconfiguração da atuação do narcotráfico na América Latina é uma das chaves de interpretação para que possamos compreender o que vem ocorrendo no Brasil. Se entre os anos 1980 e 2000, São Paulo e Rio de Janeiro eram os dois principais polos da criminalidade no País, os anos 2010 assistiram a um fenômeno conhecido como “nordestinização” da violência e do crime, cujos principais efeitos são o aumento da participação na rota internacional do tráfico e o expressivo crescimento nas taxas de homicídios. Embora o crime seja uma ocorrência complexa e multicausal, o “efeito balão” na migração do crime no sentido Sudeste-Nordeste não pode ser desconsiderado. A maior repressão às rotas tradicionais do tráfico que davam acesso ao País fez com que um novo roteiro de distribuição das drogas tivesse que ser traçado, tendo as regiões Centro-Oeste e Norte como corredores principais e o Ceará como seu grande escoadouro. Em 2015, um avião que transportava 400 kg de pasta-base de cocaína foi apreendido em Canindé.

 

Mapas com com trajetos partindo da Bolívia e do Paraguai foram encontrados na aeronave. Naquele mesmo ano, a Operação Cardume, da Polícia Federal, prendeu 26 pessoas por envolvimento com tráfico. Após a compra da cocaína na Bolívia, o material era levado até os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul em pequenas aeronaves. De lá, a carga seguia de caminhão para Rio Grande do Norte e Ceará. Uma segunda rota tem origem no Alto Solimões, na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia.

O aumento no fluxo dinheiro/droga fez com que a dinâmica do tráfico no Ceará fosse profundamente alterada: o microtráfico empreendido por gangues juvenis deu lugar a um modelo cujo funcionamento é muito mais organizado e conectado a facções de alcance nacional. Esse processo de reordenamento do crime-negócio, contudo, não ocorreu de forma pacífica. A taxa de homicídios no Ceará saltou de 25,5 mortes por 100 mil habitantes em 2009 para 52,2 mortes por 100 mil habitantes em 2014. A matança só cessou devido a um entendimento entre os grupos rivais.

[QUOTE1] 

A presença de organizações criminosas nacionais no Ceará foi por muito tempo subestimada pelas autoridades. A morte de dois chefes do PCC em Aquiraz escancarou uma realidade até então oculta: uma faceta do tráfico de entorpecentes que se abriga em condomínios de luxo e que, ao mesmo tempo, não teme se expor nos pontos de badalação da “alta sociedade”. Tal liberdade de atuação não ocorre sem que haja vista grossa de agentes públicos e conivência de pessoas do entorno, que lucram de forma indireta com os recursos oriundos do crime. Reconstituir essa rede de relações é uma tarefa fundamental para que se possa compreender o funcionamento e a atuação de tais grupos. É preciso que o campo de investigação não se restrinja apenas às periferias, mas se estenda às áreas mais ricas da cidade.

 

A intervenção no Rio de Janeiro pode agravar ainda mais essa situação, caso os chefes locais migrem suas atividades temendo os efeitos de uma gestão militarizada da segurança pública. Teríamos aí mais uma vez o “efeito balão” se repetindo com resultados desastrosos. Além de ser uma medida extremada e com viés oportunista, tendo em vista que estamos em um ano eleitoral, a intervenção pode resultar em danos colaterais ainda maiores aos estados que já se veem diante de uma encruzilhada.

 

Por Ricardo Moura

Gabrielle Zaranza

TAGS