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A necropolítica como paradigma

2017-12-18 01:30:00

Como entender que um estado como o Ceará bata seu recorde de homicídios este ano sem que haja qualquer esboço de reação a esse fato — tanto por parte do governo quanto por parte da sociedade — como se tratasse de algo natural? Como podemos ficar contentes com os bons resultados da economia diante de um cenário tão chocante de violência cotidiana, em que matar e morrer são coisas tão banais e em que meninos de apenas 10 anos atuam como “missionários” das facções nas escolas?


Uma explicação para esses dois questionamentos pode ser encontrada no conceito de “necropolítica”, ou seja, no modo como os governos fazem a gestão das vidas cujo extermínio em nada afeta a ordem social. O termo foi cunhado pelo historiador e cientista político camaronês Achille Mbembe para pensar a situação de nações que vivem em um regime de segregação social, como a África do Sul e a Palestina, mas sua lógica pode ser expandida para os contextos mais diversos, entre eles a das periferias brasileiras.


A necropolítica é constituída a partir de uma divisão entre os segmentos sociais. No Ceará, essa operação se dá entre o “cidadão” e o “vagabundo”. É comum ouvirmos expressões como “só tá morrendo vagabundo, não morre cidadão não”, como se o fato de a vítima estar “envolvida” ou ser “vagabunda” fosse por si uma sentença de morte. Quando a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) divulga que 47% das vítimas de assassinato tinham ligação com facções e 84% envolvimento com drogas, ela contribui para que essa concepção dicotômica da natureza humana se fortaleça, tornando-nos insensíveis a uma situação de barbárie. A baixa resolução de casos de homicídios envolvendo esse grupo de pessoas é uma boa mostra disso. Afinal, quem se importa com o destino dos “pirangueiros”?


O filósofo e psiquiatra Frantz Fanon, um dos expoentes do pensamento descolonizador, dá um exemplo de como a necropolítica opera: “A cidade do povo colonizado (...) é um lugar de má fama, povoado por homens de má reputação. Lá eles nascem, pouco importa onde ou como; morrem lá, não importa onde ou como”.

Podemos substituir a expressão “cidade do povo colonizado” por assentamentos precários, favelas ou “quebradas”. Em minha dissertação, denomino esses lugares como territórios de exceção, espaços em que principalmente os jovens e adolescentes são mortos sem qualquer tipo de punição para os autores do crime. Os dados revelam a territorialização desse tipo de violência: 44% das mortes de adolescentes em Fortaleza em 2017 ocorreram em 17 dos 119 bairros da Capital. Em tais locais, a presença do Estado ocorre principalmente por meio da força e da tentativa de imposição de seu poder em uma estratégia militarizada de segurança pública.


Há outro fator a ser considerado nessa equação. O “vagabundo” possui uma faixa etária e cor específicas. Os homicídios não ocorrem de modo uniforme entre brancos e negros. No Ceará, conforme o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial 2017, um jovem negro tem 4,5 vezes mais chances de ser assassinado que um jovem branco. Quando outros fatores são levados em consideração, como frequência à escola, situação de emprego, indicador de pobreza e indicador de desigualdade, o Índice de Desigualdade Racial do Ceará (0,487) fica atrás apenas de Alagoas (0,489).


Como se vê, a violência letal possui uma dimensão bastante evidente de desigualdade social e racial. Uma resposta a esse desafio passa pela implementação de uma série de políticas estruturais, indo além dos aspectos cosméticos da intervenção pública. Se temos um número tão grande de pessoas usuárias de drogas, onde estão as políticas de prevenção? Se 17 bairros concentram os assassinatos de Fortaleza, como tem se dado a ação do poder público em tais locais? Se a adesão às facções é tão expressiva, o que tem sido oferecido como alternativa às nossas crianças e adolescentes além do ingresso no mundo do crime?


Até o momento, a principal resposta dada a essas questões tem sido o incremento da força policial. Trata-se da opção mais rápida e mais vistosa. Conforme os números da violência mostram mês a mês, tal estratégia mostra-se insuficiente para conter o cenário de violência deflagrada no Estado, mas enquanto acreditarmos que só os “vagabundos” estão morrendo, estará tudo bem. O problema é que a espiral da violência não conhece limites. Quando os “cidadãos” começarem a morrer, talvez seja tarde demais para se fazer alguma coisa.

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