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Auto-retrato
Foto de Romeu Duarte
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Auto-retrato


Dia desses, perambulando pelo Centro, vi refletida na vitrine de uma de suas muitas lojas uma figura que há muito não encontrava. Mais velho, mais magro e com uma misteriosa barba, não tirava os olhos de mim. Sem dizer palavra, imóvel, quase pediu para que eu lhe decifrasse o pensamento. Nem precisou. Era aquela mesma pessoa, um antigo conhecido, nascido nas Alterosas há quase sessenta anos, no seio de uma família mestiça, de pai militar e mãe professora. Teve um único irmão, da mesma profissão que ele. Em tenra idade, veio morar nesta cidade, mais precisamente na Base Aérea, nas casas do Cocorote, da Travessa Santa Cruz e da Avenida Borges de Melo. Lá, aprendeu de um tudo, com doutorado no Colégio Cearense, onde se fez gente muito boa.

 

Decidiu torcer Ceará em pleno PV. Alérgico na infância e adolescência, sempre foi avesso a hospitais. Nunca aprendeu a dirigir, a andar de bicicleta e a nadar. Jamais fumou e bebe desde os quinze anos. Foi um bom jogador de futebol, dizem até que construiu uma bela carreira na Europa. Morador do Dionísio Torres, bairro de que não gosta, anseia viver no Joaquim Távora ou no Benfica. Não tem mais saco para ouvir música, ler novos autores e ver cinema. Sequer sabe fritar um ovo, porém deixa muita gente com água na boca com suas notas sobre a baixa gastronomia fortalezense. Continua comunista e agnóstico. Tem uma conflituosa relação com Fortaleza e não gosta de viajar. Não aceita o fato de ser órfão. Possui muitos amigos na vida e no Facebook. Está ficando surdo.

 

Formado arquiteto, fez da docência e do patrimônio seus sacerdócios. Dirigiu instituições e órgãos públicos com seu jeito manso. Casou-se com a mulher amada e com ela fizeram duas filhas lindas. Lançou livros e discos, mas não se lembra se já plantou alguma árvore. Escreve crônicas no jornal e por isso há quem pense que é milionário. Trabalha das 7 até as 19, quando se transforma em embaixador. Adora jogar conversa fora aos domingos na Travessa Crato, sob o toldo acolhedor do Raimundo do Queijo. Curte andar a pé. Sabe quase nada de informática, e não quer saber, apesar de cada vez mais precisar dela. Dois óculos de farmácia para a vista ruim. Tem uma coleção de chapéus, mas só usa três. É fã de feijoada, carne e sardinha em lata e seu sono já foi melhor.

 

Súbito, tão rápido como surgiu, desapareceu. Procurei-o em volta, nem traço do sujeito. Teria ido merendar caldo de cana com pastel na Leão do Sul, como sempre faz quando vem aqui? Ou, vexado, apreciar o interior do Cine São Luiz ou o Theatro José de Alencar, seus arquitetônicos xodós? Talvez tenha se mandado para a Praça dos Leões, sedento por uma cerveja à sombra dos benjamins. Ou então bater perna na Praça da Bandeira para um papo rápido com o fantasma do Barão de Camocim, seu chapa e cliente. Nosso herói está mudado, quase não o reconheci quando o vi. Parecia triste, quem sabe pelo passamento de vários camaradas seus nos últimos tempos. Teria eu o visto mesmo? Ou foi miragem? Ah, que figura, esse cara tão íntimo e tão estranho...

Foto do Romeu Duarte

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