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Alma suburbana
Foto de Romeu Duarte
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Alma suburbana

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A Christiane Simões e Gorette Almeida

 

Os cronistas somos animais territoriais. Costumamos demarcar nossos domínios com a urina das nossas palavras. Dos nossos inseparáveis postos de observação, enxergamos e lemos o mundo à nossa volta, deste tirando e dando lições a quem se interessar. 

 

Quem já leu Rubem Braga, Lima Barreto, Aldir Blanc, Mário Quintana e Lourenço Diaféria sabe do que estou falando. Há aqueles que tomam para si uma cidade inteira, como João do Rio, mas aí é outra história. Por estas alencarinas bandas, o melhor exemplo é Aírton Monte, dono de um coração dividido entre as mangueiras do Benfica e os bares da Gentilândia. Quanto a mim, modestamente, morador de um bairro sem graça (Dionísio Torres), o Joaquim Távora é o prisma pelo qual vejo a dura realidade.

 

A semana que passou foi cruel para com o velho bairro. Um de seus principais ícones, a Loja Amiguinho, fechou as portas. Ponto comercial mais famoso do lugar, reconhecido pelo grande sortimento de miudezas, brinquedos e, de modo especial, bicicletas, item que fazia a alegria da petizada da região e das adjacências. O prédio, com seus tons de verde e amarelo, ainda está de pé, mas suas vitrines, antes pejadas de novidades, cerraram suas pálpebras. "Meu senhor", disse-me o taxista que lá me levou para presenciar o fato, "aqui era o cafofo mais animado da Piedade" (outro nome pelo qual o Joaquim Távora é conhecido). "O que será das crianças daqui sem essa loja? Quem montará e consertará as suas bicicletas?", perguntou-me, a voz grave. O nó na garganta...

 

Adeus, minha querida, poderia ter sido melhor, muito melhor se eu tivesse um dinheirinho, mas foi bom enquanto durou. Simpatizei com você desde a minha chegada a Fortaleza; daí para a paixão arrebatadora foi um pulo. Tua varanda com jardim lateral, teu janelão art nouveau, tua elegante torrinha com sacada, teus detalhes ecléticos, amores à primeira vista que ganharam maior relevo quando me transformei em arquiteto. Quantas vezes não quis te fazer uma visita ou mesmo te invadir, inventar uma desculpa para penetrar-te e conhecer-te o interior, que imaginava sofisticado, com pisos em acapu-cetim e mosaico, móveis antigos e paredes pintadas? A ganância travestida em quitinetes te pôs abaixo. Resta a tua lembrança, Adolfo Siqueira com Visconde do Rio Branco...

 

Não chore, minha linda, foi o jeito vendê-la, mas a causa é justa pois a Tia Santa vale qualquer sacrifício. Acolheste-me quando aqui cheguei, lar de outra querida tia, Ester, a de sorriso sempre estampado no rosto. Espero que teu novo dono te mantenha íntegra para que não se dê contigo o que sucedeu com a tua colega do parágrafo anterior. Entretanto, conheço bem o tipo de carinho que os habitantes desta cidade devotam ao passado. Já não tens mais a parreira que cobria teu quintal nem os pés de carambola que minhas filhas adoravam. Quase todos teus moradores já se foram. Lembro-me dos almoços de domingo, eu menino, doido para provar a sangria feita de vinho Raposa com pedaços de maçã. A vida é só isso: o gosto da sangria com pedaços de maçã...

 

Foto do Romeu Duarte

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