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"Os Pobres Diabos"
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

"Os Pobres Diabos"


“E o palhaço o que é? É ladrão de mulher!!!!”, clama à corneta um Daniel Diaz sobre pernas de pau cambaleantes e sob a pele de um desromântico palhaço Pororoca – para nós, os palhaços e o circo foram muito ilustrados pelo cronista Ciro Colares –, assediado por crianças curiosas e ao som do tambor de Meio Quilo, personagem de Sâmia Bittencourt, composta em delicadeza imagética e ambígua – era um palhaço ou uma palhaça? –, nas ruas quentes e luminosas do povoado aracatiense, anunciando não Os Pobres Diabos, mas, sim, o Circo, que sempre foi e sempre será “o maior espetáculo da Terra”.


O longa, cuja direção e roteiro são de Rosemberg Cariry, é uma clara e reflexiva homenagem aos artistas circenses – ou à sua capacidade de sobrevivência – que ainda hoje transpõem as porteiras e veredas das cidades mais esquecidas e carroçais do interior nordestino a comungarem a sua arte. No centro das atenções: o Gran Circo Teatro Americano! Muito feliz a alusão à “Santa Ceia”, onde o milagre da multiplicação do pão pode não acontecer amanhã. Protesto poético pela forma como se faz e promove a arte no país: de pires na mão, joelho ralado e mostrando os fundos, sem saber se amanhã o show continua. E o que é pior: sem público e sem aplauso!


Inevitável – penso que não apenas para mim –, diante da grandeza do tema, trazer ao picadeiro outros filmes cuja mágica nos cirquearam um dia, como: O Circo (1928), de Charles Chaplin – o maior de todos, o fura-bolo e o cata-piolho, tudo junto –, O Rei do Circo (1954), com Jerry Lewis, Bye Bye Brasil (1979), de Cacá Diegues – uma delícia a história da famigerada Caravana Rolidei, película que conquistou o ingresso na lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos, da Associação Brasileira de Críticos de Cinema –, Os Saltimbancos Trapalhões (1981), de JB Tanko, e O Palhaço (2011), de Selton Mello – no qual o ator interpreta o palhaço Pangaré a contracenar com o grande Paulo José, o palhaço Puro Sangue. No filme, a participação engraçadíssima de Moacir Franco.


No elenco de Os Pobres Diabos: Sílvia Buarque, no papel de Creuza de Guadalajara – sem dúvida, uma nova versão de “Salomé”, personagem de Betty Faria em Bye, Bye Brasil –, uma cantora e dançarina de rumba, mãe da menina Izaura – o futuro do Circo –, infeliz com as condições precárias impostas pela vida. É casada com Zeferino, vivido por Gero Camilo, sua primeira participação em longa-metragem na terrinha natal, que apesar de demonstrar ciúmes dos galanteios de Lazarino (Chico Diaz) para a sua amada – algumas das sequências mais humoradas do filme são provocadas pelo triângulo amoroso –, nos parece mais apegado à cabra Genoveva, que é quem garante o seu leitinho “milagroso”. Zezita Matos, que recentemente protagonizou o surreal Mãe e Filha, de Petrus Cariry, interpreta a irmã do proprietário (Everaldo Pontes), aquele que diz acreditar que a arte é capaz de vencer a tudo. Com a arte e muita paciência... Daí, na trilha sonora, surge em meio à lona velha, remendada, às gambiarras naturais da itinerância e do nomadismo frequente, principalmente sob o escaldar do sol intolerante, a melancólica canção de Gardel: El Día que me Quieras. Fantásticos o clima de realismo do filme e as sequências de ”bastidores”.


Ganhador do Prêmio de Melhor Filme, pelo júri popular, e Prêmio TV Brasil do Festival de Brasília, Os Pobres Diabos apresenta uma fotografia, direção de arte, figurino e cenografia deslumbrantes. O elenco se expressa notadamente teatral, acentuado, naturalmente, na encenação do drama da crise no inferno, no qual todos daquela família circense assumem um papel à luz mais do que legítima da boa literatura de cordel. Nos princípios do circo brasileiro, uma de suas maiores atrações era a representação de dramas, coisa que a Associação dos Proprietários, Artistas e Escolas de Circo do Ceará (Apaece) já vem há algum tempo tentando resgatar. Textos adaptados do romanceiro e da tradição popular, provocantes de lágrimas e/ou gargalhadas. Sucesso para garantir o reingresso do público.


Por ser obra de Rosemberg, contista, poeta, cineasta, pesquisador e promotor da tradição popular nordestina, não poderia dar em outra: cinema, literatura, teatro e resgate. Aliás, em Os Pobres Diabos, assim como as demais produções da Cariri Filmes, o resultado é uma estética autoral de cinema independente, de experimentação (com licença ao improviso), de construção de linguagem, ambientada no espaço do regional e conferindo visibilidade à cultura do povo nordestino.


Vida longa ao Gran Circo d’Os Pobres Diabos, e que se abanque nos melhores cinemas do Brasil.


Foto do Raymundo Netto

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