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A Academia dos Leões
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

A Academia dos Leões


Todo cearense tem um pouco de médico, de advogado e outro tanto de jornalista. Deixando de lado as perversões, tratemos pois do seu jornalístico... Esse povo brasileiro, que teima em ser recordista em leitura de livro de colorir e não tem a menor “pacença” em concluir uma novelinha (referimos ao conto longo ou ao romance curto) ou mesmo a leitura de um postzinho das irresistíveis redes sociais – já vai tremeluzindo seu polegar curtidor a lascar a precipitada indignação vazia e qualquer –, adora se ajuntar, botar a boca no desentoado trombone e compartilhar os mais diversos assuntos, desde a fofoca mais vil, a mentira mais cabeluda, do valei-me deus ao cruz credo ou a recorrente promessa ou anúncio do fim de mundo.


É cruzar uma esquina, praça, porta de igreja ou calçada de bar e assistimos a uma roda de gente reunida em volta de um morto, bandido, idoso, criança perdida, abalroamento, buraco, cano estourado, mulher chorando, partida de damas, uma pelada de futebol ou não. Sim, lá está ele, o jornalista das ruas, gente simples, com as mãos nos quartos, olhar e oiças atentas até que, de repente, sai em disparada a desaguar o furo do dia na primeira e maior roda de estranhos que encontrar. E foi por esse intermédio que tomei o conhecimento de que os leões de bronze da praça dos Leões estavam todos à porta da Academia Cearense de Letras ameaçando devorar toda gente medalhada.


O jornalista que existe em mim, descrente de tal manchete, correu à praça, enquanto o jornalista que havia nele saiu desabalado no seu heroico ato de noticiar, informar, escandalizar.


De fato, o Palácio da Luz estava numa inquietação danada. Aqueles felinos que, desde 1914, pareciam nem dar bolas para o prédio, subitamente se revoltaram e ali salivavam, como bestas que deveriam ser e não são, na tentativa de invadi-lo, e só não tiveram sucesso graças à resistência do seu Nunes, guardião-mor da Academia, único com cadeira permanente, cujo patrono é o padeiro Paulo Kandalaskaia.


O homenzinho bravo, com olhar austero abaixo do boné camuflado do exército, ameaçava: “Vão procurar o que fazer magote do cão! Olha o tamanho da minha peixeira...”


“Je veux seulement dévorer des universitaire!”, urrava o líder dos carnívoros, que trazia em torno do pescoço uma serpente e protestava nu ao som da Marselhesa e à leitura do Manifesto Antropofágico: “A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu.”


Os repórteres dos poucos periódicos locais criaram hipóteses mirabolantes para justificar a inusitada loucura de devoração de acadêmicos por aqueles animais, mas nenhuma digna de habitar a primeira página, devorada também pela impensável corrupção sem jeito que assola o País.


Os trêmulos acadêmicos acuavam-se no salão principal. Uns poucos deitaram mansamente a confabular sobre os leões literários, trazendo autores como Esopo, La Fontaine e até L. Frank Baum, enquanto seu interlocutores só conheciam o Aslan, das crônicas de Nárnia, e o Rei Leão da Disney. Um deles, à vontade, só temia o garranhudo espécime do Imposto de Renda, enquanto outro, num canto, condenava Hemingway às penas do inferno e, noutro, chutavam o vade-mécum do direito. Da janela, um deles escondeu o medalhão e acenava sorridente com a carteirinha de fiel torcedor do tricolor de aço.


Alguém deduziu que se as feras decidissem levar adiante a ideia de devorar acadêmicos iriam se fartar, pois no Ceará academias se dão como preás. Outro, solene, retirou a boina e sugeriu que seria digno um sacrifício em nome da literatura, mas cônscio da boa etiqueta inglesa, orientou: “Uma dama primeiro.”


Uma das minoritárias representantes do gênero, entretanto, recusou a suspeita honraria: “Alto lá, meu confrade, que isso é machismo!”


Ajeitando a fivela da calça à altura do umbigo, um acadêmico sugeriu: “Senhores, senhora, somos racionais e justos. Resolvamos esta contenda pelos argumentos indefensáveis dos algarismos: que o sacrificado seja enumerado pela ordem natural e sequencial da vossa cadeira... Principiemos pelo acadêmico de número 1.”


Nisso, o Sânzio de Azevedo, justamente o detentor de tal cadeira, cujo patrono é Adolfo Caminha, invocou: “Que conversa é essa? Rapaz, eu já tenho muito o que fazer... e tem mais: essa coisa de ser devorado por leão é coisa de Mandrake, viu? Abraxas!”

(continua na próxima coluna)

Foto do Raymundo Netto

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