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Às favas todos os escrupulos

2017-10-18 01:30:00

Muitos motivos e nenhuma razão envolvem a devolução do mandato de Aécio Neves (PSDB). Não, os senadores não se moveram pela percepção de que o tucano é ou pode ser inocente. Decidiram salvá-lo, primeiro, porque inúmeros parlamentares poderão estar na mesma situação amanhã ou depois. Mais de um terço dos votos por Aécio foram de investigados. Só não teve mais votos porque a bancada do PT enxerga nele um inimigo e sabe que se desgastaria com a opinião pública caso votasse pela devolução do mandato. Abstraindo o fato de ser Aécio, a maioria dos petistas discorda do afastamento, pelo mesmo motivo citado anteriormente. A outra explicação para terem salvo Aécio é o velho toma lá, dá cá. A arcaica troca de favores. O presidente Michel Temer (PMDB) se envolveu pessoalmente nas negociações em prol do tucano. Misto de gratidão pelo passado e expectativa de retribuição futura. O PSDB está dividido sobre a denúncia contra o peemedebista. A ala pró-Temer ganhou argumento a favor. O Planalto atuou, afinal de contas, para salvar o presidente do PSDB —ainda que licenciado.


Acreditava-se que o voto aberto podia intimidar senadores, a menos de um ano da eleição. Qual nada. Eles estão preocupados com a sobrevivência imediata e nada fala mais alto que o pragmatismo, o espírito de corpo e a busca de autopreservação.


A SEMENTE DAS CRISES

Ciro Gomes (PDT) sabe como ninguém animar o ambiente político. Animar para não dizer tumultuar. Observe-se a bagunça que se armou da semana passada para cá: criticou Tasso Jereissati (PSDB) como talvez nunca na vida tenha feito. “O PSDB é quem sustenta o governo Temer enquanto Tasso faz discurso contra. Mas (Tasso) manda no Banco do Nordeste, manda nas repartições, taca (sic) tráfico de influência em tudo segurando dinheiro do Ceará e tem secretário dentro do governo do Camilo. Como fica isso?”, disse Ciro na última quinta-feira.

 

Em uma frase, acusou Tasso de incoerência, de se aproveitar de governos que critica e, mais grave, de praticar tráfico de influência e bloquear dinheiro federal para o Ceará. Leia neste link:

http://bit.ly/ciroxtasso


O presidente do PSDB cearense, ex-senador Luiz Pontes, acusou Ciro de mentir, e cobrou do governador petista Camilo Santana que se manifestasse. Bateu, sobretudo, no secretário tucano a quem Ciro fez alusão — Maia Júnior, gestor do Planejamento de Camilo. “É muito vergonhoso que ele (Maia), que conhece o Tasso há muito tempo, não tenha a hombridade de defender o senador. Que peça para sair do partido então”.


Olha o tamanho da confusão: a fala do pedetista Ciro levou o presidente tucano a cobrar o governador petista e bater duro no secretário tucano. Barafunda como o PSDB cearense não via há tempos — desde que se esvaziou e passou a faltar até quórum para ter briga. Leia neste link: http://bit.ly/pontesxmaia


No O POVO de ontem, Camilo entrou na conversa. Sem ir para o confronto, acabou contradizendo Ciro, ao negar que Maia seja cota de Tasso no governo. Afirmou que o secretário foi convite pessoal dele. Depois de tudo, ainda ficou rusga na aliança governista.


FOME E DIGNIDADE

De tempos em tempos, ideias bem-intencionadas se mostram reveladoras da percepção de seus autores sobre a pobreza. Quando era secretário da Saúde de Fortaleza, na gestão de Lúcio Alcântara como prefeito (1979-82), o ex-deputado e ex-conselheiro do TCE Pedro Timbó sugeriu aos retirantes da seca que comessem ratos.

Em 2013, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) recomendou uso de besouros, gafanhotos e formigas como complemento alimentar. O diretor-geral da FAO desde aquela época é o brasileiro José Graziano da Silva. Ele foi ministro da Segurança Alimentar, no comecinho do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT). No segundo mês no cargo, usou o seguinte argumento para conseguir apoio de empresários paulistas para o programa Fome Zero: “Temos de criar emprego lá (no Nordeste), temos de gerar oportunidade de educação lá, temos de gerar cidadania lá. Porque se eles (nordestinos) continuarem vindo para cá, nós vamos ter de continuar andando de carro blindado”.


O prefeito paulistano João Dória (PSDB) recuou da proposta de transformar comida perto de estragar em ração para os pobres. A gororoba, antes apresentada como “alimento completo” que substituiria refeições, agora é apontada como suplemento alimentar.


As três ideias têm o nobre propósito de matar a fome, mas trazem embutida a percepção de que pobres são cidadãos de segunda classe. Podem ser alimentados com coisas que os governantes que propõem não comeriam.


A fome não decorre da escassez de alimentos. É resultado da distribuição desigual, da destinação de áreas cultiváveis a determinados usos, em detrimento de outros. Qualquer instrumento seria válido para salvar alguém à beira da morte, diante da total falta de alternativa. Porém, transformar comida quase podre em política permanente de alimentação é tratar os pobres como cidadãos inferiores, quase bestializados, aos quais a sobrevivência é o bastante. Isso travestido de ação humanitária. Uma indignidade.

 

Érico Firmo

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