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Talento?
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Talento?


Um escritor importante (não lembro se Flaubert) afirmou, certa vez, que o talento, na verdade, não passava de uma longa paciência. A frase ficou rodopiando em minha cabeça desde então, muito mais pelo que ela deixa de dúvida, desconfiança, do que pelas gotas de certeza que traz em suas entrelinhas.

 

Já nasceria o artista com uma dose genética, inata, de talento? Uma sensibilidade diferenciada, uma maneira própria de ver o mundo, um ângulo qualquer meio enviesado de perceber certas coisas que a maioria dos mortais não é capaz? No meu modesto entender, acho que "sim" e "não". Explico: o artista já nasce com essa sensibilidade especial (não diria jamais que ela seja superior) de ver "certas" coisas de um ângulo, digamos, não (ou pouco) convencional. Mas perguntaria: e apenas essa sensibilidade diferenciada seria suficiente para o suposto artista desenvolver com êxito sua arte? Outra pergunta que me persegue quando penso sobre o assunto: somente uma criatura com essa tal característica seria capaz de se desenvolver como artista? Aí que entra a resposta "não", que veio junto com o "sim", um pouco atrás.

 

Acredito que mesmo um escritor "naturalmente" talentoso, cheio de "inspirações", não vá muito longe se não tiver toda uma carga de trabalho. E aqui lembro que "trabalho", para mim, não significa apenas o ato em si de escrever, reescrever, lapidar. Mas, bem antes disso, o ato de ler (muito e bem), pensar (muito e bem), ter curiosidade e coragem para aprender sobre "coisas", às quais, muitas vezes, não estão obrigatoriamente, e diretamente, ligadas à ação imediata de escrever; dialogar com os textos lidos dos grandes autores, os que encontraram suas próprias soluções artísticas, mas, obviamente, não para imitá-los apenas, e pode não conseguir escrever uma grande obra.

 

A nossa história literária, mesmo o nosso meio artístico contemporâneo, está cheia de exemplos: artistas, que, por um motivo ou outro, deixam de obter êxito em seu ofício. Já outros tantos escritores, mesmo não tendo essa "facilidade" toda do "bom talento de berço", conseguem, através de esforço, dedicação, enfim, do suor de seus corpos e mentes, desenvolver obras importantes, competentes, de mestres, até.

 

Trocando em miúdos, acredito que ocorra na arte o que, muitas vezes, vemos acontecer no mundo do futebol. Vou tentar justificar comparação tão esdrúxula. Muitas vezes, acompanhamos aquele jogador visivelmente talentoso, de bom drible, boa habilidade, mas, que, no final da carreira, não consegue uma reputação de craque, mil também são os motivos que o impedem ou dificultam seu êxito. Por outro lado, quantas e quantas vezes, acompanhamos aquele jogador de qualidades técnicas apenas medianas, mas que, com uma dedicação grande, uma concentração incrível, não consegue muitas vezes ombrear (vejam o caso de jogadores como Vavá, em 1958, Amarildo, em 1962, Dunga, em 2002, e diversos outros) em êxitos com os grandes mestres do gramado? O que não significa que preferimos o jogador esforçado ao craque, claro que o craque esforçado, preparado, e num bom time, conseguirá chegar aos píncaros da glória.

 

Entremeando estas categorias de craques desleixados, medianos esforçados e craques dedicados está a maioria dos nossos escritores contemporâneos: os sem (ou com poucas) habilidades que não se esforçam. Esses enchem o mundo de livros, escrevem com uma "facilidade" espantosa, exploram o "talento fácil" até a medula, se vangloriam de seus já quase 50 livros.

A maioria de nós (me incluo com unhas e dentes nesta categoria) é dos que levam jeito pra coisa, tem certa habilidade, mas sabe que se não ralar, se não ler muito, se não for curioso, se não dedicar-se com afinco ao ofício, sucumbirá sem ter alcançado sequer o primeiro degrau do êxito. Por sermos maioria, ficaremos a vida inteira lutando com revisões, remendos nos textos, leituras dos mestres, correndo que nem loucos atrás de editoras, que parecem (sempre) correrem bem mais que nós.

 

(Continua na próxima coluna, no dia 30 de agosto).

 

Foto do Pedro Salgueiro

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