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O corpo do baobá
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

O corpo do baobá


A atração pela casca grossa do baobá, impenetrável como carapaça de bicho antediluviano achado náufrago na areia da praia. Matéria orgânica que foi se sedimentando até encontrar a forma de árvore.

 

Era domingo. Passeava pela cidade, visitava marcos históricos da metrópole. Os umbigos que enterramos e pelos quais saímos à procura um dia. Um farol, uma estátua, uma praça, um pedaço de mar, um bar, uma esquina, uma curva, um telhado e uma mureta. Procurava entender a raiz, como começara e como terminaria, como as pontas se atam depois de desfeitas.

 

Tinha ido até ali andando a esmo, e agora parava ao lado da árvore gigantesca cuja copa encobria outras copas, uma sombra projetada por tronco bojudo incapaz do enlace total.

 

O corpo do baobá riscado como o dela, tatuado às centenas. Nomes inscritos de adolescentes apaixonados, corações feitos com corretivos, balões registrando aniversários, um sem número de datas. A árvore como monumento. Declarações de amor, mensagens várias deixadas para trás como os pedidos largados em garrafas.

 

De quantos braços precisaria para alcançar a largueza daquela árvore?

Lembrou então de sua pele rugosa, o trato severo dos produtos baratos que usava para se banhar, lavar o rosto, as partes. Nele não havia diligência nenhuma, era apenas a energia motora e pouco zelo, o fato bruto de natureza incerta. Cravos o cobriam como as escamas do peixe abissal que, no entanto, preservava uma vitalidade.

 

Chega mais perto. Não delira, está sozinha mas também certa de que a árvore a acompanha. No parque, um vigia finge varrer as folhas secas instaladas no vão entre duas placas de cimento a seus pés. Dez metros adiante, um homem dorme no banco de madeira. Ninguém mais.

 

Encosta as pontas dos dedos. A sensação de que alisava a pele adormecida de um monstro marinho cuja respiração era compassada, quase imperceptível, um jeito acanhado de fabricar o próprio silêncio. A manufatura de um tempo diferente era o que a impressionava nos modos da árvore velha em torno da qual turistas se reuniam para se deixar fotografar.

 

Demora-se no gesto. Leva a outra mão, agora como se rezasse num muro de lamentações, os braços flexionados e o rosto a centímetros do tronco e no tronco um nome.

 

É aí que sente o cheiro. Terra salgada, vento, maresia, o perfume das putas recém-banhadas descendo pela rua que vai até a igreja e da igreja até outra praça, onde se encontram e acenam para os homens perdidos no domingo. Todos os cheiros fermentados num só.

 

O adocicado do corpo imiscui-se ao odor terroso que se desprende do bicho-vegetal. Ninguém a vê quando finalmente o abraça. É ele, o monstro, que sente agora entre os dedos e pernas, é ele que lhe aspira de leve levemente os cabelos.

 

O vento mais forte debulha a folhagem. Alguns galhos tremem e rangem. O miolo vazio da cidade, comércio suspenso no feriado. A certeza de que a raiz ainda tem os dedos fundos no calcário.

 

A pele da árvore é rígida, não se contrai, e sua superfície acidentada é como um mapa possível, uma constelação de cartas embaralhadas.

 

 

Foto do Henrique Araújo

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