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A livraria
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

A livraria

 

Você não deve saber que voltei àquela livraria. Foi um reencontro melancólico. As prateleiras, antes cheias, agora esvaziadas de histórias.

O setor de revistas também despovoado, apenas uns poucos globos terrestres a servir de lembrança de que ali havia um mundo. Pelas estantes, magras publicações semanais espalhadas ao gosto de uma lógica que custo a entender. É a lógica da crise, palavra conjugada em todos os tempos, modos e vozes.

 

Ando mais um pouco. Repito gestos de outra época. Abro, folheio, cheiro. A sensação de já haver estado ali quando vestindo outra roupa.

 Atravesso todo o espaço de obras estrangeiras, concentradas ao lado dos livros de bolso empoleirados numa gôndola discretamente situada no canto. Histórias penduradas como cordas de caranguejos expostos na feira livre.

 

Procuro um vendedor. Não encontro nenhum. Quero perguntar por que os livros mudam de lugar tão rapidamente, saber se poderei encontrá-los na semana que vem naquele mesmo ponto ou se terei sempre de tatear às cegas à procura do romance.

 

Antes a dúvida não angustiava. O fato de que pudesse esbarrar com uma narrativa inesperada era na verdade o motor para que fosse às margens. Era uma aposta na vida e esforço de escape.

 

Mas a livraria se tornou finisterra, o ponto mais extremo de uma geografia familiar que se degradou com o tempo. Uma paisagem abismal cercada desses fiordes que atiram tudo ao mar, sonhos, desejos, paixões.

Finisterra é uma cidade, é possível que você saiba, mas também uma latitude. É ainda uma história cujo nome encontrei por acaso e sobre a qual tenho escrito há cerca de três meses, sempre nesse ritmo de quem vai ao cinema num sábado sem pressa de chegar.

Subo as escadas de madeira com faixas de lixa nas pontas para evitar acidentes. Muitas vezes imaginei cair dali. O atrito, todavia, sempre prende a sola dos sapatos ao chão, como se o que garantisse a estabilidade fosse o descompasso dos materiais e não o contrário, a semelhança.

Refaço um caminho, remexo obras, revisito uma lombada. Com os dedos mais firmes e livres depois de tantos dias vacilando entre páginas avulsas, percorro a superfície rugosa do carpete.

Aspiro o ar refrigerado que é essa mistura do produto químico que usam para higienizar prateleiras e o cheiro que se desprende do papel de gramatura variada: o mais branco, o mais amarelo, o mais fino. Acho que seria capaz de reconhecer esse odor a léguas de distância. O cheiro de livraria.

A memória tátil é a mais confiável. Muito tempo à frente, quando recuperar o fio perdido for uma tarefa inglória, espero que o corpo se encarregue de alinhavar as costuras, renovando bordados antes perdidos.

Miro o conjunto de canecas de super-heróis, e imediatamente penso no amigo-secreto do fim do ano. Tudo já pertinho de acabar e recomeçar. Lembro de quando era início, e a livraria se enchia de gente aos domingos. Pessoas sobraçando sacolas, a música ambiente, os gestos de euforia no café, crianças enxameando pais e mães, um exército de mulheres vestindo branco, como a demarcar a função para a qual se destinavam: eram empregadas. Não estavam ali a passeio.

Tudo isso é passado, e a livraria de hoje é como o sonho desabitado de um amor esquecido na parada de ônibus.

 

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

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