Logo O POVO+
Carta de domingo
Foto de Henrique Araújo
clique para exibir bio do colunista

Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Carta de domingo


Uma amiga conta que escreveu a um amigo a quem não vê desde há muito. Uma dessas presenças que se mantêm constantes à medida que o tempo passa e se fortalecem, sobretudo, porque o tempo passa.

 

Conheço pouco dela, menos ainda dele. Se chamo amiga é porque lhe tenho muito carinho. Talvez não saiba, mas o mais provável é que saiba.

 

Então quando me disse que cometera uma bobagem, logo me interessei.

 

As bobagens são reveladoras, eu lhe falo, dizem tanto de nós quanto as certezas e as opiniões. Não lhe apresentava novidade. Disso também sabia.

 

E a bobagem era um bilhete em modos de carta. Nada excepcional, mas exatamente por isso fora do comum. Não quis saber de quem se tratava, o que lhe havia revelado.

 

Mas era conteúdo de urgência. Dessas coisas que se põem pra fora quando o domingo caminha para as horas finais, no céu há lusco-fusco e no dia seguinte as horas úteis recomeçam sem trégua num futuro de pouca valia.

 

O que reclamava na carta? Não sei. Mas urgências assim são acesas pela memória do corpo. Mensagens de domingo não começam no domingo, vêm de muito antes. Remontam a um mês inteiro, a um ano, a dois, a uma vida que se comprime na dobra de algum pensamento que escorre.

 

Também ignoro se o destinatário a leu. E como a leu. Como terá reagido? O que terá respondido? A amiga silencia. Vejo-a no próprio apartamento dando voltas no computador. Tudo ali confirma uma existência.

 

Talvez queira fugir. Um extravio como solução mágica, um desaparecer como
golpe final.

 

Finalmente admite que não deveria estar ouvindo essas músicas, fantasiando certas coisas, liberando esses espaços num dia como hoje. É frágil todo o arranjo, eu lhe digo, sem especificar a que me refiro. Ela pondera e concorda, também sem dizer se tinha entendido ou se apenas intuíra do que se tratava.

 

Não é caso de paixão. Paixão dá e passa. Tampouco um amor de mansidão, feito pra deitar numa rede de varanda nas tardes de sábado no aguardo de uma velhice de cafunés e choramingos de crianças em varandas como bichos domesticados.

 

Pergunto se acredita num afeto que é só desassossego, que importuna perto e longe, que marca braços e pernas. A amiga responde com uma carinha sorrindo na caixa do bate-bapo, um desses rostos amarelo-ovo que se usam.

 

Eu entendo. Ela entende. Estamos todos assim, diz repentinamente acesa. E não sei se se refere a si, a si e ao amigo, ou se me inclui nesse plural tão vasto onde caberia com folga uma cidade e todo o seu deserto.

 

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?