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As brincadeiras do mundo
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

As brincadeiras do mundo


A rigor, o ano acabou, concordam? Não dá mais tempo fazer muita coisa, exceto essas que a gente já tinha na cabeça mas vinha adiando, seja por que motivo for. A denúncia contra o Temer já era, Aécio agora está no cantinho dele, as ruas permanecem vazias, Doria distribui sua ração (a nossa), mortes aos milhares, censura à arte firme e forte. Tudo mais ou menos como era esperado.


A Nara, que demora a escrever, disse antes de ontem sobre essas dores que a gente carrega fora do Facebook. Contou uma história dolorosa sobre uma mulher que encontra o filho morto brutalmente. Depois falou algo sobre etapas etc. Vencer as fases, passar por elas com alguma dignidade e também humor. O humor eu acrescento agora, porque acho impossível sofrer sem rir um pouco. Mas sei que isso não tem nada de engraçado. Este ano não tem nada de engraçado. Foi tudo muito grave e às vezes até trágico.


Mas não precisa ser tão triste. Mesmo esse caso da Simone Barreto, artista censurada pela Unifor. O gesto de violência contra o seu trabalho tem um lado positivo, até pedagógico. Expôs os limites de uma institucionalidade fraturada. E foi exatamente isso que aconteceu no País em 2017: as instituições (Família, Estado, Universidade, essas com letra maiúscula) se viram no mato sem cachorro. Estão à mercê de valores emergindo dos esgotos da nossa humanidade tupiniquim. E isso não é necessariamente ruim.


Um exemplo do que falo. Minha filha tem uma boneca feita pela Simone. É uma sereia negra. Já levou pra escola inúmeras vezes, uma dessas de classe média alta onde ela só estuda porque tem bolsa. Já esqueceu na casa de parentes, que acharam o brinquedo esquisito e até chamaram de “vodu”. Falaram na boa, eu sei, mas é assim que a gente rasga o corpo dos outros: na boa. Na boa, deixa essa viadagem de lado. Na boa, não beija esse cara no meu bar. Na boa, não segura na mão da garota no cinema. Na boa, deixa de ser escroto com todo mundo. Na boa, não fode tanto com os sentimentos dos outros.


Conheço bem o que é estar na boa. Então posso imaginar o quanto a realidade é desafiadora. Por isso fico feliz que minha filha goste tanto dessa boneca-”vodu” e às vezes até durma abraçada com ela. Acorda e coloca na cadeira pra ver TV. Deixa ao lado da cama com outras bonecas brancas e longilíneas. Se a gente pensar que brincar é reinventar o universo à nossa maneira, o que a minha filha cria nas suas brincadeiras será melhor do que o meu. E nele talvez o desenho de uma mulher nua não cause censura.


É esse também o outro lado da história que a Nara desfiou, quem sabe mais preocupada em responder às próprias perguntas, que devem ser as perguntas mais importantes que ela se fez em 2017. A minha pergunta começou a ser respondida por esses dias. E sua resposta é: as coisas acontecem silenciosamente. Eu sei, não é uma grande descoberta. Mas as iluminações são feitas dessas miudezas. Um tropeço, a vista que erguemos de súbito, um passeio, um beijo, um encontro. Pequenezas do dia a dia.


Este é um ano em que temos tudo pra perder a fé nos outros. Um ano de lascar, como o cearense desencantado gosta de dizer. E talvez ninguém entenda mais de desencanto do que a gente. Mas também um ano em que as coisas boas e más estiveram explícitas, visíveis, à mostra. Assim como uma criança escolhe brincar com esta e não com aquela boneca, temos escolhas a fazer. Disso depende o tempo que virá. De um modo ou de outro, espero que seja bom.


Foto do Henrique Araújo

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