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Encontrar a Cidade
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Encontrar a Cidade


Num livrinho muito citado e muito lido também, Italo Calvino fala que uma mesma cidade pode ser tantas, vista tantas vezes e por tantos olhos. Como se cada morador ou habitante – há diferença entre os dois conceitos – enxergasse o lugar de um jeito diferente.


A cidade da violência, a cidade das flores, a cidade da bicicleta, a cidade do mar, a cidade do vento, a cidade do céu, a cidade dos amores, a cidade das armas.


Queria Fortaleza mais livre, mas tenho engulho quando abro o jornal e vejo que um apartamento num bairro afastado era usado como matadouro por facções que se apoderam de parte do território da capital cearense. É a mesma metrópole por onde, toda manhã, vejo pedalar o vendedor de Totolec rente ao mar. A mesma onde paro e tomo água de coco.


A mesma onde gestores comemoram um centro de conexões de voos que terá o condão mágico de mudar as estatísticas de homicídios do dia pra noite. Basta que se diga “portas em automático”, e as portas da civilização se abrirão novamente pra nós, novos bárbaros metidos em morticínios típicos da terra incivilizada aonde chegam caravanas catequizantes. Como há meio século. Mais de três mil mortes vão desaparecer, agora rumo a Paris a Amsterdã.


Antes uma coisa não tivesse a ver com outra. Antes fosse apenas azedume de cronista. Antes as coisas fossem realmente separadas. Mas acontece que não são. É tudo junto, e toda tentativa de separar é exercício retórico que só produz sofrimento. Falo de cidade, de vida e de saudade. Porque uma cidade são mil cidades, mil saudades, mil distrações. Todas contidas em si mesmas. Antes fosse possível encontrar a mesma Fortaleza em todas, do Barroso ao Papicu.


Me pergunto se há ipês no bairro onde funcionava o “tribunal do crime” noticiado aqui mesmo, no O POVO. Se, pela manhã, no caminho da escola, as crianças dão com a vista num amarelo-ouro fincado na rua. Se os adultos se maravilham que seu lugar não seja tão feio. Se os mais velhos contam os anos que restam à medida que a árvore se espicha e floresce, num movimento de vida e não de morte.


Me pergunto se os corpos encontrados, aos pedaços e inteiros, eram de jovens, se suas famílias vivem a agonia da falta ou se celebram o fato de que a província é um ponto de encontro de muitas rotas que depois ganham o mundo a perder de vista, rumo à Europa e a outras lonjuras de que jamais ouvirão falar.


Calvino faz o olhar do governante da cidade fictícia peregrinar por ruas e vielas da mesma urbanidade. Sua intenção é revelar o invisível. E demonstrar que um lugar são muitos lugares, habitamos todos um espaço comum. Partilhamos trajetos, presentes e futuros.


Antes esse espraiar-se de Fortaleza fosse não para fora, mas para dentro. Antes suas rotas levassem a que seus viajantes-moradores descobrissem na mesma cidade a sua cidade. Antes cada um inventasse caminhos e se perdesse sem medo de que fosse julgado e condenado em distâncias nas quais sua passagem é vetada pela barbárie do crime.


Mas cá estamos, respirando uma Belle Époque primaveril como um carnaval fora de época e celebrando ipês que nascem solitários no meio da aridez, como a flor do poema de Drummond que rompe o asfalto cercada por tanta náusea.

Foto do Henrique Araújo

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