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Não se nega água à porta
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Não se nega água à porta

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Dona Rita Belchior ou Rita Maria de Jesus acha que os 26 garis de Reriutaba são os trabalhadores mais importantes da cidade, que fica na região Norte do Ceará.

 

Por isso, na tarde do dia 24 de mais um dezembro, Rita serviu a eles uma merenda à tarde e ofereceu uma toalha de banho para cada um como lembrança do encontro.

 

Estava feliz aos 89 anos de idade, era um sonho pendente. Convidá-los para dentro de casa. Viu gerações de lixeiros passaram por sua vida recolhendo o que rebolava fora.

 

Dona Ritinha é o síntese de algumas mulheres que nos criaram. Mães, avós, bisavós, tias e vizinhas. Dadivosas, cada uma de seu jeito. Ou não.

 

Dessas feito minha avó Marieta que não negava água a ninguém que batesse palmas ao portão. Havia uma quartinha ou, quando chegou a primeira geladeira lá em casa, garrafas e canecas destinadas aos pedintes.

 

Não se negava, alguém tinha sede. E aqui, quem se criou no Semiárido sabe o valor de um copo d´água.

 

Muitas vezes, a água fresca servida em copo de aguardente ou de geleia Mocotó se estendia para um cafezinho e um pedaço de pão com manteiga.

 

Pedir ao portão era comum, não deixou de ser. Quem negava água havia a superstição de, um dia, morrer afogado pela sovinagem. Castigo popular para os avaros.

 

Alguns pedintes não atendidos maldiziam a casa. Jogavam pragas contra os mãos de vacas que nem água davam.

 

Ao portão também pedidos de ajuda para remédios e comida. Mamãe  vinha lá de dentro com um xícara de arroz, uma cumbuca de feijão e, várias vezes, um prato feito.

 

Tinha gente que comia ali. Alguns levavam para as bocas que tinha ficado em casa. Geralmente uma récua de crianças. Um ou outra vinha com a mãe.

 

Nem sempre a despensa lá de casa estava cheia, mas se fosse o tempo das goiabas do quintal se ofereciam as melhores. As três goiabeiras, feito as mulheres da minha vida, eram fartas até quando não podiam.

 

Davam aos pássaros, às lagartas, aos morcegos e enchiam o bucho da gente quando a safra fazia lama. Ou então ventavam e davam sombra.

 

Minha bisavó não suportava ter de dizer "perdoe" quando não havia um tostão pra dividir. Era evangélica, da Assembleia de Deus, tinha tido um pai português/rico no Maranguape.

 

Mas não por isso, nem por culpa ou piedade, ela dava. Com todos os defeitos, distribuía quando podia repartir. Ela achava coragem, além da conta, alguém se submeter a pedir aos outros.

 

Na época da Páscoa era uma perturbação no batente da sala de visita e oitão. De instante em instante alguém pedia o jejum da Semana Santa.

 

E quando chegava o Dia de Reis, a cantoria à porta e coincidia com as vacas magras, tínhamos de ficar num silêncio constrangedor. Quietos de vergonha, luzes apagadas, para não ter de dizer "perdoe".

 

Nem era obrigado dar. Era uma brincadeira, mas não poder repartir envergonhava minha mãe Edmar, minha avó Marieta e minha bisavó Mariana.

 

Talvez porque havia a vergonha de se espalhar à rua que ali naquela casa também havia dias de pindaíba, carvão e fogareiro.

 

Pois Deus salve o oratório da casa de dona Rita ou das mulheres que me criaram (com virtudes e ruindades), onde Deus (qualquer Deus que respeite os outros, os bichos, as águas e as árvores) fez a morada...

 

Feliz 2019 com tudo que ele for!

 

Foto do Demitri Túlio

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