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As Dunas Assombradas

17:00 | 26/08/2017
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Família é meio assim, vamos tendo parentes em quase todos os cantos. Pelos sobrenomes, que não cabem todos no batismo, há de ter havido uma história amorosa ou penosamente violenta que terminou unindo bem ou mal. Lá longe!

 

Pois muito bem. Por parte de meu avô paterno, Afonso, sou Araújo e outros nomes que não sei dizer. E, andando pelo Sertão para reportar, acabo encontrando ramos de um tronco só. Judeus, batizados à força, encaixotados em navios portugueses e despejados em Camocim.

 

Vovô era alvo dos olhos verdes. Mesmo feitio de minha bisavó Rita, pouco amorosa, a quem ainda alcancei. Branca de veias verdes, olhos negros e os filhos, a maioria, de pupilas claras. Seria do meu avô Florêncio, primo legítimo dela. Não o conheci. Meus tios e tias eram uns doces.

 

Nasci negro e só soube disso porque, durante muito tempo, era tratado por “moreninho”. O mais “escurinho”, o único dos cabelos “ruins”, encaracolados. Diferente das cabeleiras lisas de meus cinco irmãos, quatro brancos e um meio índio. Foi boa a convivência na infância. Com apelidos e tudo.

 

E uma brincadeira, na infância, me deixava injuriado. Hoje, rumino. Quando queria implicar comigo e o Breno (o feição de índio), bivó Ritinha (no tempo dela, as bisavós faziam a diferença entre bisnetos) dizia que éramos filhos das Dunas assombradas de Almofala.

 

Lá sabia o que era isso! E como dizia que eram medonhas, imaginava ser cria de algo ruim. Palavra pode ser reimosa, ainda mais na infância. A bisavó, misturada à caduquice ou algo do fim da vida, encenava as dunas. Dava risadas, ladainhava, assobiava o vento.

 

Tinha medo, raiva, mas gostava dos devaneios dela. Os ventos aloprados de agosto na praia de Almofala, lugar de Araújo e pouca pesca nessa época, teriam engravidado minha mãe em algum varal de quintal. Vó Rita, também era chamada assim, fazia pouco.

 

A moça solteira e “embuchada”, para não desgraçar a família, foi casada de arranjo e ligeiro com um rapaz de poucas notícias. Enfezado com o matrimônio, o vento teria começado a soprar muito forte no dia da cerimônia.

 

Tão enlouquecido que fez as dunas da praia de Almofala, em Itarema, se moveram pra Cidade. Soprava dia e noite. Fez a areia invadir a igreja de Nossa Senhora da Conceição, onde mamãe se casaria e a soterrou por quase meio século.

 

As dunas também encheram a vila quase toda. Mais ainda, nas casas onde viviam os Araújo de minha bisavó. Família que cedeu, enganada, o rapaz para se casar com mamãe.

 

Como eu e Breno éramos os diferentes, só poderíamos ser filhos das dunas de Almofala. Por tempos, tive crença na conversa de “vó Ritinha”. E quis ser branco, ter os olhos claros e os cabelos lisos. De preferência, louros.

 

Depois, lá na frente, me vi em Almofala. Numa viagem para reportar sobre tartarugas que, nascidas ali, depois de 20, voltavam para desovar onde haviam nascido...

 

E a igreja de Nossa Senhora da Conceição, enterrada por 45 anos, estava à mostra.

 

Ficou debaixo das dunas de 1897 a 1941 ou 1942. Em 43, estava toda fora novamente. O vento removeu.

 

Fiz o cálculo.. Se fosse filho do idílio entre os ventos, as dunas e mamãe, eu teria mais de 120 anos...

 

Minha bisavó virou personagem das lembranças. Ainda bem que a conheci e inventou a história. 

DEMITRI TÚLIO é repórter especial e cronista do O POVO demitri@opovo.com.br

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