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A vida, esse mistério
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

A vida, esse mistério

A Henrique Baima

Ah, que enigma insondável é essa nossa vida. Que desígnios brumosos, que abismos intrincados não nos aguardam ao dobrar uma esquina... Quanto segredo se esconde num papel amassado, jogado na rua, de dentro do carro apressado? O que nos revela o choro contido da comerciária no fundo do ônibus, a expressão cansada do aposentado no banco de praça, a gritaria dos alunos na saída do colégio? Será que é preciso um manual para entender o mundo? Quanto a mim, apenas um pobre aprendiz da existência, resta-me vê-la e vivê-la. Todo dia é uma aula de existir, com suas lições, deveres, prêmios e castigos. Quem pensa que o estoque de surpresas se acabou, fica pasmo com o que ainda pode acontecer. Sem essa de brincar de viver, verbo que se conjuga à vera. Ok, Wilde: “A vida é muito importante para ser levada a sério”.

“Procura-se um periquito”. Esfreguei os olhos, imaginando que a vista estava a me pregar peças. A casa humilde na João Brígido estampava em sua porta um pequeno cartaz: “Procura-se um periquito. Sumiu por volta das 11 da manhã do dia 14, no sábado, da Rua J. da Penha, 874. Ela atende por Jade e não voa muito. É super mansa”. A informação se completava com os números de celular do infeliz dono, o valor da recompensa (R$ 200,00) e a foto do tal psitacídeo. Refeito do susto, causado principalmente pela impressão inicial de que talvez se tratasse de um lamento lascivo, fiquei a pensar na dor de quem perdera o pássaro fujão, quem sabe, a essa altura, já digerido por algum gato mais esperto. Jade pelo verdor das penas ou pela canção de João Bosco (“ela é coisa rara de ver, é joia do Xá, retina de um mar”)? Desisto, jamais saberei.

“Procura-se um periquito”. A frase ficou comigo dias a fio, ocupando espaço na minha atribulada mente. Teria o bicho escapado à fome do bichano ou sucumbido às artimanhas das muitas aves de rapina que voam no céu desta Loura Ressabiada do Sol? Teria encontrado novos senhor e lar, de onde, ave ingrata, dava solenes bananas aos antigos? Ou, pródiga, teria retornado à natureza selvagem, aproveitando a onda em torno do Parque do Cocó? É muito destino para animal tão pequeno. Curioso, decidi passar novamente defronte à casinha para rever o anúncio. Teria sido recuperada e recebida com pompa e circunstância na velha morada? Quem teria ganho a gratificação pelo feito? A canalha já tinha apagado o “e” do nome da foragida, dando conotação sexual à sôfrega busca. “Ô povo ruim”, pensei, enquanto ria de canto de boca.

Ainda estava com o periquito na cabeça quando, no bar, vi um coxinha e um mortadela darem-se as mãos e celebrarem o encontro, há muito adiado. “O ódio insano nos afastou, mas agora os reais interesses do Brasil nos reúnem novamente”, disse o primeiro, quase em lágrimas. “Já que agora zerou tudo, já que há corruptos de lado a lado, lutemos contra as reformas trabalhista e da Previdência e por eleições diretas!”, gritou o segundo, a taça cheia em punho. “Aí também você quer demais, amigo”, cortou o coxa, “a gente dá o pé e vocês querem a mão!”. “Só falta agora dizer ‘Fora Lula e leve o PT junto”’, curtiu o embutido, “vocês não mudam!”. Perguntará certamente o(a) caro(a) leitor(a): o que tem a história do periquito com todo esse fuá? Valho-me, então, de Clarice: “Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”.

 

Por Romeu Duarte

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