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A cidade e seus heróis
Foto de Romeu Duarte
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

A cidade e seus heróis


O monumento, no dizer de Françoise Choay, é um elemento universal cultural, algo que fez, faz e parece que fará parte de todas as sociedades do mundo. Sua função é mobilizar a memória coletiva e afirmar a identidade de um determinado grupo social. Deriva do verbo latino monere, que significa “fazer recordar”, “instruir”, “advertir”. No mais das vezes, é criado com uma intenção rememorativa; entretanto, objetos, seja um quadro, um edifício ou uma cidade, produzidos para outros fins, com o passar do tempo e a consideração das pessoas, podem adquirir a condição monumental. Nas palavras da rabugenta autora francesa, “o monumento tem por finalidade fazer reviver no presente um passado engolido pelo tempo”, atuando, portanto, como uma proteção contra a transitoriedade da vida. O homem carece de mitos, eis a verdade verdadeira.


Todo esse preâmbulo culto foi necessário para situar o(a) caro(a) leitor(a) na recentíssima polêmica que se deu no rastro da implantação da estátua de Leonel Brizola na Travessa Crato, no Centro da Loura Desmemoriada do Sol. Liga-me um bom e atento amigo, indignado com a ação da Prefeitura: “nada contra o engenheiro, um dos melhores quadros da esquerda brasileira desde sempre”, disse-me ele, rangendo os dentes, “porém, sua escultura deveria ter sido colocada na Praça dos Voluntários, que é o coração do trabalhismo no Ceará, tanto é que o busto do Getúlio lá está”, concluiu. “Ué”, fresquei, “pensei que você iria defender a colocação da estátua do Raimundo do Queijo na travessa”, ri-me. “Deixe disso, cabra!”, rosnou ele, “Seu Raimundo está vivo e vai estar assim ainda por muito tempo!”, desligando o telefone na minha cara.


Para que a amizade não sofresse qualquer mossa, resolvi ligar para ele e retomar o diálogo, bruscamente interrompido. “Mil perdões pela brincadeira. Mas, quem você acha que deveria ter uma estátua ali?”, ponderei. “Quem?! Ora, o Zé Tatá!”, navalhou ele, “O sujeito que durante 50 anos representou um dos setores laborais mais ativos na Zona Central de Fortaleza, atuando nos três turnos do dia, só parando para lavar as partes e beber um caneco d’água”. Meu amigo estava realmente com o cão nos couros. “E tem mais, cara: para completar, temos que mudar o nome da via para Feira dos Psitacídeos (eufemismo), tal como era chamada antigamente. Você sabia que o cabaré do Zé Tatá, um sobrado, fica defronte à loja do Seu Raimundo pela General Bezerril? Você não é o bam-bam-bam do patrimônio? Pois leve essa bandeira”.


Como se pode ver, a memória, para os que a valorizam, é território perigoso, requerendo de quem o atravesse que o faça com cuidado. Foi só o meu amigo endiabrado desligar para outro, mais calmo, entrar em contato. “Onde ficava o Bar do Anísio na Beira-Mar?”, quis saber. “Não tinha idade para frequentar bares na época em que o Anísio bombava. Por que a pergunta?”, respondi. “Uns amigos querem propor a colocação de uma estátua do Belchior defronte ao local”, anunciou. “Bem, além do Belchior, por lá também andavam o Augusto Pontes, o Cláudio Pereira e o Petrúcio Maia, entre outros que já cantaram para subir”, informei. “Ok, mas aí já é o Centro Espírita Alma Boêmia de Bronze”, cortou, rindo. Lembrei-me da canção do titã Arnaldo Antunes: “as coisas não têm paz”.

Dentre elas, as estátuas talvez sejam as que sofrem mais.

Foto do Romeu Duarte

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