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Mãe de Coração
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Mãe de Coração


Para Cleide e Sabrina


Li ontem, estampada em camisa escolar comemorativa do dia das mães: “Mãe, o amor que se expressa por meio do dom de GERAR a vida!” Logo que a vi, pensei: “Fazer” filhos é a coisa mais fácil do mundo, até por ser, na maioria dos casos, frutos de um instante prazeroso. Gestá-los, todavia, não é tão simples – como não sou mulher, não correrei o risco de avançar nesse tópico –, mas, dependendo dos fatores de entorno, qualquer complicação, mesmo às de acentuado grau, quando diante desse significante acontecimento, pode ser completa e absolutamente irrelevante. Cientes, aqui, que nenhuma mulher tem a obrigação de ser mãe para ser plena ou realizada. Aliás, seria um grande favor às futuras gerações que algumas reconhecessem a sua inabilidade, inaptidão ou consciente malquerer ao exercício, em vez de ouvir ao clamor da opressora e inconsequente práxis social.


Algumas mães, entretanto, ou nunca experienciaram esse momento gestacional ou mesmo que o tenham vivido, sobra-lhes ainda amor suficiente para dividir com outro(a) filho(a), sendo este “de coração”. Sim, “mães de coração”, como são comumente denominadas as mães adotivas, aquelas que ousam crer ser possível uma história de AMOR superar a do abandono de berço.


Atualmente, no Brasil, existem cerca de 37 mil crianças distribuídas em unidades de acolhimento institucional – antigos “abrigos” –, mas apenas 7 mil são consideradas aptas a serem adotadas. Entre as 30 mil, algumas ainda têm vínculo com a família biológica – mesmo que não afetivo – e outras aguardam a tardíssima Justiça na conclusão da destituição do poder familiar, processo este que, por lei, deveria durar até 120 dias, mas que, na “vida real”, muitas vezes chega a 5 anos. Dá para imaginar o imenso prejuízo que essa lentidão traz para a vida de uma criança?


Por outro lado, o número de famílias habilitadas para adoção é bem superior: 36 mil. Daí a dúvida: se temos 7 mil crianças querendo ser adotadas e 36 mil famílias querendo adotar, por que ainda encontramos crianças esperando nessa fila? Desconsiderando a questão dos trâmites legais, entre as respostas, a mais comum: cerca de 70 a 80% desses pais preferem crianças – geralmente meninas – brancas, com, no máximo, 3 a 5 anos – quando a maioria tem entre 6 e 17 anos –, e que não tenham problemas de saúde nem irmão(s) – cerca de 36% das crianças habilitadas têm irmãos também inscritos no Cadastro Nacional de Adoção.


A “gestação” da mãe de coração, para quem não vive essa realidade, não é nada fácil, correspondente a um fórceps legal – a parteira, no caso, é a assistente social; e a sentença de habilitação, o parto.


A princípio, caberia ao leitor sentir na pele empática a história muitas vezes marcada por frustradas tentativas convencionais ou não e/ou mesmo por experiências de luto. Depois, transcender aos preconceitos, ao inesperado julgamento familiar – às vezes, familiares não entendem e a recriminam –, à(s) culpa(s), possíveis fragilidades e ao exercício de paciência e resignação diante das visitas e despedidas dolorosas, da coleta documental, de infindáveis entrevistas e a perda do irrecuperável tempo.


Contudo, o mais importante é o reencontro, o momento único de definitivo amparo, acolhida e de aceitação um do outro, ação movida pelo amor, independentemente da forma como este lhe chega e que, portanto, não há menor diferença, pois adoção nada tem a ver com caridade e nenhuma dessas maternidades é menor do que as biológicas, já que o amor que nasce desse coração não se limita aos esboços do sangue nem ao umbigo.


Nesse Dia das Mães, preferia ter lido: “Mãe, o amor que se expressa por meio do dom de APOSTAR na vida!” Nossas vidas e vivas às mães e filhos do coração.


Foto do Raymundo Netto

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