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Três, três, passará...
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Três, três, passará...

 

“Convenci-me, desde muito, que ia merecer três chances, sempre. Três pedras para atirar, três grãos para semear, três oportunidades para cada coisa que tivesse o propósito de aditar aos meus esteios. (...) Depois, assentado em tudo, não tardou a duvidação de que três era muito.”

Geraldo Jesuíno


Três, e apenas três vezes em minha vida eu o avistei, em todas tive a certeza de sua força; também creio que seja a quantidade provável durante o intervalo comum de uma existência. Alguém um dia me afirmou que talvez sua maior astúcia seja a de nos fazer acreditar que ele não existe – e na maioria das vezes consegue seu intento.


Na primeira vez me surpreendi, provavelmente por não ter a consciência que tenho hoje, ou apenas porque ainda fosse bastante jovem (e quando somos moços não admitimos que qualquer fenômeno possa ocorrer impunemente, sem causas nem consequências). Eu vinha distraído pela rua Conde D’eu, admirando alguns casarões antigos – lembro que pensava nas quantas vidas aqueles palacetes abandonados haviam abrigado antes de se tornarem um amontoado de escombros –, quando distingui, dobrando a esquina, quase cinquenta metros à frente, um vulto deslocar-se em minha direção, na mesma calçada; olhei para todos os lados e não encontrei ninguém... o trecho da rua era bastante escuro, mas permaneci tranquilo devido a não ser muito tarde. Meti as mãos nos bolsos e firmei o passo para cruzar logo com o estranho que caminhava devagarinho ao meu encontro; a poucos metros dele resolvi levantar discretamente a vista, com certeza por medo (também por curiosidade). A sua roupa era escura, o rosto protegido pela penumbra não me deixava ver-lhe com nitidez os traços; porém quando emparelhei com ele adquiriu uma intensa luminosidade (talvez a lua tenha aparecido entre as frestas dos galhos de alguma árvore), e por um breve instante vislumbrei seu rosto, de traços finos e firmes (apesar das muitas rugas e do cabelo ralo e esbranquiçado); olhou-me calmo e no canto do lábio notei um risinho cínico; nesse momento um calafrio percorreu-me a espinha, arrepiei todo o corpo... apressei o passo e, involuntariamente, virei-me por sobre o ombro... não avistei ninguém. Contornei a esquina e disparei na mais apressada correria de que minhas pernas foram capazes.


O tempo passou, fui esquecendo o episódio, até que bem uns vinte anos depois tive outra experiência estranha. Eu vinha numa viagem longa, atravessando certa região seca e deserta do Sertão dos Inhamuns, com pequenas cidades surgindo de tempos em tempos na escuridão. Passava muito da meia-noite, e eu já dormira bastante, de repente acordei com o ônibus dando partida; devia ter parado sem que eu acordasse; despertei meio atordoado e notei que havia subido um passageiro. Ele se movia pelo corredor e, lentamente, se encaminhava para a traseira do veículo, apesar de não haver quase passageiros nas poltronas da frente, sendo a minha a última a estar ocupada; no instante em que o homem passou por mim (notei se tratar de um indivíduo da minha idade), senti a mesma sensação do incidente há tanto tempo ocorrido: novamente aquele frio na espinha, novo arrepio no corpo inteiro; daí não consegui mais dormir – de vez em quando me virava para a poltrona no final do corredor escuro. Demorou uma eternidade para clarear; todos os pensamentos seguiram na direção do indivíduo sentado na retaguarda: assim que amanheceu fingi tirar algo da mala no bagageiro logo acima de minha cabeça com a finalidade única de espreitá-lo... mas que surpresa: a cadeira estava vazia; nem sinal dele. Peguei rápido meus pertences e me sentei na primeira fila, evitando olhar para trás.


Também o tempo apagou as lembranças desse acontecimento: acho até que teria morrido sem recordar o triste episódio, não fosse ele ter-se repetido há poucos dias comigo: era uma tarde quente, dessas em que todas as nossas energias são gastas no achar uma maneira tranquila de voltar o mais rápido possível para casa. Subi no coletivo com essa intenção, porém senti um vento frio atrás da nuca: uma aragem bem gelada percorreu-me o corpo (vale esclarecer que estávamos no verão). Virei-me imediatamente ao ouvir um ruflar de asas logo às minhas costas – um último passageiro agarrara a maçaneta da porta com o ônibus em movimento, sequer percebi que a porta já se encontrava fechada. O rapaz passou rapidamente por mim, atravessando o veículo inteiro, e quando se preparava para descer voltou-se em minha direção (vi em seu rosto jovem todas as energias que um dia foram minhas) – e só nesse momento me dei conta de que aquela era a terceira (e talvez a última) vez que ele me aparecia de maneira assim tão súbita.

Foto do Pedro Salgueiro

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