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Meninos
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Meninos


“Infância, era este o nome da criança

Que, hoje, dorme entre os bichos,

lá no escuro...”

(Ai de Mim!, António Nobre)

Sentado na espreguiçadeira, o Padre Heládio retira vagarosamente algum piolho dos testículos – uma perna encolhida, e a outra, bem aberta, escorada num tamborete de trava quebrada. Daqui a pouco ele vestirá a batina, limpando o sebo das mãos com um molambo, pegará a bicicleta e irá espantar a molecada que joga bola no pátio da igreja, usando a porta principal como trave.


Ao longe vagueia D. Francisca Melo pelas calçadas, falando ao vento e gesticulando muito. A criançada a percebe e não tardam os insultos:


— Chica sabão, Chica sabão!...


Ela desvia sua eterna rota das calçadas e vem enxotar a cambada sem-vergonha, sem pai nem mãe, que se afasta gritando – a bola de meia à mão, chinelos na outra.


D. Francisca chega esbaforida à porta da igreja e só encontra o vigário, que a custo sobe o alto da matriz, aproveitando todas as sombras para respirar fundo e limpar o suor do rosto. Bem longe a meninada, antes de procurar outro local para brincar, ainda grita os últimos insultos:


— Chica sabão, Chica sabão!...


Mais tarde ela passará de casa em casa, informando-se de quem eram filhos os demônios, para, em seguida, enredar aos pais deles os desaforos recebidos. No crepúsculo o vigário reservará um cantinho da pregação para reclamar dos moleques que maltratam, a boladas, a porta da igreja e sequer respeitam os idosos.


No outro dia, bem cedo, lá estará novamente o reverendo a remexer nos testículos ensebados – as pernas escanchadas no tamborete manco –, em seguida irá enxotar os garotos do pátio da igreja, mas não os encontrará, visto que já foram perseguidos por D. Francisca Melo; aí então ele destilará alguns conselhos sobre como agir nessas ocasiões, indo atrás dos pais e relatando o sucedido... E, logo depois, pela boca da noite, reservará um pedacinho do sermão para, mais uma vez, reclamar dos meninos, que destroem sem dó a igreja e jamais respeitam os mais velhos.

Foto do Pedro Salgueiro

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