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Quem de nós
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Quem de nós


“Feito aquela gente honesta, boa e comovida, que caminha para a morte pensando em vencer na vida” (Belchior)


Não se imaginou fugindo, assim de repente, sem avisos nem sinais, de nossa maçante rotina? Não recordo se vi em filme, se li num livro, ou se ouvi alguém contar, a história em que a personagem desaparecia para muito tempo depois retornar disfarçadamente ao seu antigo mundo, ficando – como um outro – a participar da sua própria ausência, medindo a reação dos seus familiares, conhecidos e amigos; não sei bem se vi, li, ouvi ou se apenas imaginei essa delicada situação.


Quando criança lembro de um sujeito – marido de uma senhora que foi envelhecendo sozinha, perdida dentro do seu casarão escuro, criando com dificuldades os filhos – que simplesmente saiu para comprar o café (enquanto o chaleira era posta no fogo pela esposa) para nunca mais voltar. Não houve lamentos nem sofrimentos aparentes, ou a nossa frágil sensibilidade infantil não os conseguiu vislumbrar naquele imenso vazio de lágrimas e choros.


Vez em quando, e com uma frequência cada vez maior, sinto essa estranha vontade de simplesmente sumir; porém não mais para procurar ouro em minas perdidas, nem caçar aventuras pelas veredas do mundo com minha baladeira no pescoço, como fazia na juventude quando vivia de mochila pronta num canto da sala; mas só pelo simples prazer de me perder de tudo e de todos, sem rancores, medos ou motivações explícitas, apenas para curtir essa calma “anestesia” da falta, essa maravilhosa sensação de não existir pras palpáveis coisas físicas; esse degustar de ausências das velhíssimas ações tão bem conhecidas.


Mesmo que seja para ao retornar perceber que todas as coisitas boas de tão gastas pelas nossas outrora retinas cansadas são (e serão) por demais saborosas quando reencontradas assim sem mais nem menos intencionar. Bobices de fazer o mesmo como se fossem as primeiras e únicas vezes saboreadas: primeiríssimo flerte e beijo, revistinha encontrada depois de anos (que fora trazida pelo pai em viagem), preciosa frase perdidinha num parágrafo esquecido de um livro há tempos extraviado, canção de fechamentos dos parques e circos da infância ouvida à noite entre lágrimas, perfume das roupas secando no varal do terreiro, cheirinho da terra recém plantada no roçado...


Mesmo que seja para resignadamente constatar que o mundo corre-e-corre muito bem em seus velhos trilhos sem nossa supérflua presença; que a terra gira em sua já sulcada rota das galáxias sem que nosso mísero peso a desloque milímetros de seu inevitável destino sideral.


Para que – com essa louca imprudência de voltar – possamos constatar que não fazemos a menor falta.

Foto do Pedro Salgueiro

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