Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
Alguém me perguntou se eu acho que o Chico ficou velho cantando essas coisas de largar mulher e filho por causa de um amor vadio em pleno século XXI. Está na nova música, Tua cantiga, de que muita gente gostou, mas eu achei meio preguiçosa. Parei e pensei: bom, o cara é artista, canta o que bem entende, nem tudo que canta é verdade, tampouco o fato de tratar disso numa canção significa que concorde com o que diz. É como acusar um escritor de racismo porque seu personagem defende a segregação. Ou um diretor de cinema de homicídio porque o protagonista do filme matou uma pessoa.
Mas depois lembrei do Ney e do Johnny Hooker e toda aquela confusão porque o Ney, que é um monstro mas não está acima do bem e do mal, disse que, antes de ser gay, era humano. Eu entendo o Ney. E entendo quem discorda dele. Entendo quem acha que o Ney não pode ser criticado e entendo quem olha pro Ney e fala: esse cara está datado. E entendo mais ainda que alguém acredite que tem o direito de dizer como quer ser visto, o que não quer dizer que tenha controle sobre como é visto de fato.
É o que anda acontecendo com o Chico. De modo geral, é o que anda acontecendo com muito homem, mas o caso do Chico é especial porque o Chico é o Chico. Tanto que dispensa o sobrenome. Dizemos Chico apenas, e todo mundo sabe que não se trata do Chico da linha Antônio Bezerra/Messejana ou do Chico que vende tapioca na esquina da avenida da Universidade, mas do Chico de Futuros amantes, Olhos nos olhos e Pedaço de mim. O Chico que fala à alma feminina com intimidade.
A questão é que essa alma está mudando, e nisso muito cabra vai ficando pelo caminho. Não sei se vale pro Chico. Não tem a ver com idade ou classe social. Eu, por exemplo – e aqui não vai nenhum exercício público de autocomiseração para expiar os pecados e assim passar por bom moço –, às vezes me pego tentando justificar as próprias mesquinharias com malabarismos retóricos e as velhas desculpas que me fazem pensar no meu pai, de quem não sou tão diferente.
E aí vem o cara da música do Chico cantar, vazando um romantismo desbragado: eu deixaria tudo pra ficar contigo. Tudo é tudo mesmo, família, casa e trabalho. Nada que Amado Batista e Reginaldo Rossi já não tenham dito de maneira menos sofisticada. O problema é Chico dizê-lo. O problema é Chico repeti-lo.
Entendo que parte das mulheres tenha achado esse trecho de Tua cantiga tão brega e deselegante quanto “um arroto no meio do beijo”, como escreveu a produtora Flávia Azevedo no artigo O amor datado de Chico Buarque. Entendo que esse lirismo ordinário do compositor não sensibilize mais a alma empoderada de hoje. Entendo que o assunto tenha alimentado facções pró e contra Chico.
Mas entendo também que cantar o amor é uma experiência que resiste ao discurso politicamente correto – o amor às vezes é amoral. Entendo que largar filhos e mulher já foi uma metáfora romântica, mas hoje é apenas signo de um tempo atrasado em que esposa e criança integravam o mesmo pacote ao qual o homem dava as costas quando se enrabichava. E entendo que, entre o velho e o novo, talvez não haja uma distância assim tão grande.
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