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Um fio que se liga ao mar
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Um fio que se liga ao mar


Eu tinha escrito uma dessas coisas tristes que a gente escreve quando o mundo gira em falso e deixamos cair objetos que escolhemos carregar, pratos, louças, garfos, livros e caixas contendo fotografias, que se espalham pela rua e depois precisamos juntar com a ajuda de estranhos.


E montar em seguida o quebra-cabeças que somos nós mesmos, estendendo um fio de Ariadne para sair do labirinto e driblar o minotauro, chegando ao final sem entender direito como foi parar ali.


Mas aí reli e pensei: quero escrever uma coisa alegre. Dei meia-volta e refiz todo o caminho no mesmo passo, uma trilha de retorno desenhada por alguém diferente do que foi, não apenas nesse sentido de Heráclito, de que uma mesma pessoa não toma banho duas vezes no mesmo rio – porque o rio já é outro e ela também.


A pessoa que regressa, como num dos livros do Alejandro Zambra, é sempre uma terceira, tenha passado o tempo que for, seja porque ela é uma, seja porque a casa é outra. São como uma caixa de fotografias quando cai e se mistura aos passos de quem vai e de quem volta.


Escrever é uma costura tanto quanto tecer esse fio imaginário que atravessa as ruas, chega à esquina, faz uma curva e alcança o mar – escrever é ligar-se ao que não tem fim por meio de um recurso frágil e escasso, que é a palavra. Curar-se pela palavra é combater canhões com arco e flecha. Às vezes funciona; noutras, não.


Li em algum lugar que a noção de costura tem se repetido na arte contemporânea, como a sugerir que precisamos atar pontas soltas para resolver impasses coletivos e pessoais. Nunca senti tanta necessidade de ver juntar-se ao outro um diferente, de assistir a um fio perder-se entrando na água, criando entre nós e o que arrebenta um vínculo, ainda que precário. Nunca precisei tanto de curar-me costurando em mim o que está fora, como a garantir que, pela falta do que sou, esse complemento fará com que a lacuna deixe de ser lacuna e o vazio, vazio.


A hora da estrela, o último livro de Clarice Lispector em vida, está prestes a completar 40 anos. Logo de cara, a obra pergunta: como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? É desse modo que o narrador também fala de um fio que jamais se interrompe, um fio que é um caminho que é uma costura que é um mar que é um amor que é uma letra, a partir da qual tudo começa.


Nesta semana enviei uma carta pelos Correios com a esperança de que chegasse a um endereço que eu não sei qual é, uma casa de muro baixo e plantas crescendo na fachada, um local com ares de abandono. Fica na rua Padre Valdevino e está para alugar. Se eu fosse outro, alugaria essa casa e moraria nela por anos a perder. No futuro, puxaria pelo fio da memória e tentaria lembrar por que tinha ido parar ali. Eu não saberia.

 

Quis escrever como se costurasse pedaços de fotografias e memórias, numa colagem de tempos, um mosaico percorrido por um fio ordinário que atravessa tudo, enovelando-se aqui e ali, dando-se a engodos que jamais poderei desatar sozinho. Quis costurar para escrever que esse fio, mesmo esticado, não se esgarça, talvez porque é um fio trançado por muitas mãos saindo de casa, andando pelas ruas, cruzando esquinas e chegando ao mar, diante do qual param e pensam se vale a pena seguir adiante.


Foto do Henrique Araújo

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