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As coisas pela metade
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

As coisas pela metade


É com satisfação que anuncio a quem anda em descompasso com o calendário: chegamos à metade do ano. Hoje, pros desavisados, já é o mês de junho, quando a gente pula as fogueiras possíveis e cai nas impossíveis, come bolo de milho a se fartar, acende rojão e espera pipocar no céu, olha pro braseiro luzindo nas calçadas e quer chegar perto, mas tem um certo medo das coisas que esquentam muito e queimam o corpo.


Hoje é o começo do que ainda falta. Sobre isso, o cearense tem um jeito próprio de falar. Por exemplo, quando quer dizer que está um pouco triste, o nativo assegura: estou “meia assim”, como se apenas metade do corpo carecesse de felicidade e a outra metade andasse bem da vida, sorrindo pro vento. Moral da história: a gente carrega a falta aonde vai, mais ou menos como o casal matuto que se desentende no meio da quadrilha junina mas continua dançando até o final da apresentação.


Ontem anotei uma frase que não tem relação com tudo isso, mas tem. Está no livro O Culpado, do Bataille, que não fala sobre cearensidade, mas sobre medo, corpo e amor: “Tenho de me deixar levar, de agora em diante, por movimentos de liberdade, de capricho. De repente, é chegado o momento, para mim, de falar sem desvio”. E depois: “O sentimento da chance exige que eu me coloque em face de uma sorte difícil. A vida é sempre o encantamento, o festim, a festa”. Bataille associa o desvio à festividade e o corpo à orgia. Tudo nele é metade. Uma ideia de complementaridade que pode soar moralista, mas não é porque essa falta jamais se consuma. Por isso, diz ele, vivemos aos tropeços à procura de um braseiro que faça arder a pele. O medo é parte da dança.


Dividir o ano em dias e os dias em horas é pedagogicamente interessante. Damos por encerrada uma temporada e partimos pra seguinte. Inventamos o ponto final onde deveria haver apenas vazio, respiração e fluxo. O jeito de parar é dizendo que parou. Dizer já é dizer que deseja. “Nenhuma reprovação, nenhuma vergonha”, registra Bataille. Dividir já é mascarar o tempo e nele as marcas e as vergonhas, de modo a pacificar o passado, que é cheio de reprovação. Mas esse passado vive aos saltos. Assalta a noite em meio ao dia. É como um rojão junino. E o futuro é como fogueira: sentimos seu calor ainda longe.


“O único meio de atingir a inocência é se estabelecer resolutamente no crime”. Essa é outra frase que escrevi no caderno, não sei se pra esquecer ou lembrar. Pensei nela enquanto andava de bicicleta, checava o celular e via uma nuvem imensa se formar no horizonte, tudo ao mesmo tempo. Era como se chovesse apenas no futuro e não agora. Já era outro mês naquele pedaço da cidade. Era outro dia, outra vida. Atravessei a chuva até chegar à capela de São Pedro, uma construção que flutua na orla feito uma jangada de pedra.


Li num estudo recente que a crise de meia idade pode começar aos 35 anos e se estender até os 58, tempo em que já nos consideram cruelmente velhos. Dentro de alguns dias faço 37, o que me torna um alvo em potencial: além de chikungunya, dengue e todas as traficâncias políticas e afetivas, tenho de lidar com mais essa turbulência a desgovernar voos que chegam à metade do percurso. O que me consola é outra frase de Bataille: “Deus não se ocupa da natureza das coisas”. É como se dissesse: é normal se sentir “meia assim”.


Foto do Henrique Araújo

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