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O cozinheiro e a tarantela
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

O cozinheiro e a tarantela


Havia um chef de cozinha italiano na nossa mesa de amigos e amigos de amigos em uma praia do Ceará. Saborosos frutos do mar anunciavam um almoço agradável até o momento em que, sem mais nem menos, ele começou a dizer que o Brasil é uma terra de corruptos. Falava isso como se fosse um profundo conhecedor da complexidade dos atributos culturais brasileiros.


Embora eu tenha entendido que ele falasse de uma experiência pessoal e do que tem assistido nas mídias com relação ao assalto à democracia por uma organização criminosa instalada em muitas das instituições do País, pedi que ele não generalizasse, sob o argumento de que tratar a cultura geral pelos parâmetros da cultura dominante é, no mínimo, uma falta de consideração ao país onde ele está trabalhando.


Falando em ritmo de dançarino de tarantela, ele não demonstrou qualquer convencimento ao que falei, mas em situações ofensivas como essa é fundamental que reajamos, a fim de não sermos cúmplices da consolidação de uma consciência coletiva estereotipada e contaminadora da moral social. Legitimar conceitos detratores do Brasil, como esse defendido pelo chef italiano, só é bom para quem se beneficia da corrupção como meio de vida e de morte.


Em um planeta onde as informações são cada vez mais manipuladas pelas grandes corporações do mercado de conteúdos e pelas centrais geopolíticas de inteligência é muito delicado sair reforçando impensadamente um senso comum em situação de vulnerabilidade decorrente da incontrolável avalanche de valores que soterrou muitas esperanças no Brasil.


Precisamos estar atentos ao sentido das coisas que nos chegam a todo instante pelas mais variadas falas e telas. Não podemos deduzir precipitadamente que o termo “tarantela” utilizado para designar a bela e tradicional música e dança italiana tenha surgido de algum aspecto venenoso das tarântulas, já que essa expressão cultural está associada à famosa aranha caranguejeira pelos passos rápidos dos dançarinos.


Não podemos dizer que todos os italianos fazem parte da “famiglia Cosa Nostra”, que vivem de extorsão, exploração de prostitutas, cassinos, venda de drogas e contrabando. A má fama de mafiosa, ardilosa e ladrona não significa que a maioria da gente italiana integre o famoso sindicato do crime. Do mesmo modo não podemos achar que todo político da bota europeia é um
potencial Berlusconi.


Tenho grande apreço pelo povo italiano e por suas relevantes contribuições às artes e à ciência. Aliás, parte significativa da cultura do nosso país é recheada da cultura dos trabalhadores imigrantes daquela terra de sol; pessoas que foram forçadas a deixar para trás uma Itália de fome e desemprego para serem acolhidas no Brasil do final do século XIX e em meados do século XX, e que se tornaram também brasileiras, nossas irmãs.

 

E hoje, o Brasil, mesmo com todos os graves problemas decorrentes da usurpação do poder por quadrilhas organizadas, continua aberto a receber empreendedores e trabalhadores estrangeiros, a exemplo do chef italiano que anda a cuspir no prato que come. A sociedade, refém da bandidagem que controla tantos crimes no País não deve e não merece ser igualada aos seus algozes. É indecente e desrespeitoso.


Foto do Flávio Paiva

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