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Guaiamum sem plumas

17:00 | 29/07/2017

Talvez João Cabral de Melo Neto devesse ter se atolado pelo Cocó. Ou talvez não. Damos conta pelo poeta do Capibaribe, apesar de não chegarmos às sandálias dele. O Cocó carece muito da poesia sentida, ruminada na lama.


Pois vai aqui um apelo para os arquitetos que planejam desenhar ao concurso de ideias do governo do Ceará. No redesenho dos caminhos do Cocó, sejam mais poetas que acadêmicos atrás da prancha digital, no ar-condicionado dos escritórios.


Peço que entendam uma história. O tal concurso deve beneficiar mais a floresta, o rio, os bichos e o mar do que os veículos particulares estacionados ou engarrafados. Mais o manguezal do que restaurantes e cafés para desfilarmos nossas vaidades bestas.


Imaginem uma coisa. Ali, no derredor da Sebastião de Abreu é morada do caranguejo Guaiamum. Um bicho azul, lindo, carapaça e patola medonhos.

O coisa bonita não é de se enfiar na lama, vive mais no apicum.

 

Em tocas por onde vão e vêm os pés de tênis. Pra lá e pra cá. Caminhando, sarando o corpo, soltando papelzinho de Ice Kiss, garrafinhas bebidas de água Indaiá, Santa Clara, embalagem de biscoito Fortaleza e o solado do Nike que largou e a gente não retorna...


O Guaiamum, caros arquitetos, está na lista dos habitantes da Terra que, provavelmente, serão extintos antes de nós. Ameaçados porque o manguezal foi sendo tirado deles. Esgotos dos prédios chiques e ocupações na beira do rio foram afogando a porcaria no rio.


Então para que serve um redesenho de ideias? Seria mais para caranguejo-azul do que pra nós! É porque o governo, também “engabinetado”, sabe pouco sobre a andada do Guaiamum, do chama-maré, do aratu. Do caranguejo-uça já extinto ou na peinha.


“Andada” é quando os caranguejos saem, em algumas noites, sedentos por um namoro. Pra ter prazer e perpetuar o mangue. Namoravam muito na trilha do Rio, lugar onde já não há e poderia ter uma ponte de madeira até a beira. Ou então se fecha o acesso.


Pois vai outra dica, sem qualquer prepotência, o manguezal não pode ser um shopping. Pode não. Lojinha pra isso! Lugarzinho pra aquilo! No máximo e necessário, a previsão de um laboratório de pesquisa.


Bem ali, onde existem os dois campos de futebol. E os rachas dos sábados e domingos? Vão, sem prejuízos e sustentáveis, lá pra cima. Para a área dos shows, onde há um campo e duas quadras. Cabe qualquer time de fora.


Sobre o laboratório também o suspenderia. Uma palafita. Sustentável, vivo. Com possibilidade de receber visitas, aulas sobre o mangue e a cidade, vivências de perto. Em seu redor, área solta para o rio se refazer.


Um horto e um banco de sementes para espalhar araticum, mangue preto, mangue branco, mangue vermelho, inharé, pau-bombo, trapiá, juazeiro, timbaúba, macaúba, pau-branco... Pra perpetuar e reflorestar quem quiser.


O concurso de ideias, antes de nós, é pras árvores nativas dali. É pra cada pássaro ou passarinho. Sibite-do-mangue, Choró-boi, Martin-pescador, Carcará, gavião-carijó, bacurau, garça-moura, sabiá-da-cabeça-cinza, pica-pau-anão-da caatinga, savacu, maçarico, beija-flor...


O mangue já está cheio de prédios, arrodeados de restaurantes, postos de gasolinas, padarias, oficinas, escolas, shoppings...


Quem vai ao Cocó, renascer dentro dele, é pra contemplar. Suspender o juízo. Ir lá e não deixar nada, a não ser o gozo de ter ido.


Há borboletas pavão ali, oito olhos de enganar, estaladeiras, mariposas de todas as noites. São elas que continuam o mangue, todos os dias. Na vida breve e na morte renascida na lama e no sal.


Fico, aqui, com minha ignorância de não arquiteto. O concurso de ideias é para o mangue. Não para a Cidade entupi-lo de mais descartes. Quem entra na floresta tem antes de limpar os pés, rezar o que souber, pedir permissão e prometer não feri-lo nunca mais.


DEMITRI TÚLIO é repórter especial e cronista do O POVO demitri@opovo.com.br

 

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